Artigo

Parcerias no setor farmacêutico de Cuba

Graziela Ferrero Zucoloto[1]

As atividades farmacêuticas foram marcadas, nas últimas décadas, por uma série de mudanças relacionadas à busca pela redução de custos, pelo aumento da rentabilidade dos projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), redução da estrutura interna de P&D das grandes empresas e por uma crescente terceirização de serviços tecnológicos (Alves, 2022). O crescimento da participação de medicamentos biotecnológicos, em geral mais complexos e de maior custo, em vendas também surge como fenômeno mundial (Vargas, 2024). 

A partir de tais mudanças, surgiram novas formas organizacionais nas atividades farmacêuticas, pautadas pela emergência de alianças estratégicas entre agentes – que, em alguns casos, são competidores –, resultando no fortalecimento de redes de cooperação, as quais podem assumir formas diversas, tais como consórcios, joint ventures, alianças estratégicas e subcontratações (Alves, 2022; Queiroz, 2024; Radaelli, 2008).

Apesar desse movimento, que enfatiza o crescimento dessas parcerias, Rikap (2019) demonstrou que a assimetria de poder entre os atores dessas redes e suas diferentes nacionalidades continua ampla. Ao estudar grandes empresas farmacêuticas – todas concentradas em países desenvolvidos –, a autora evidenciou que, enquanto universidades, instituições públicas de pesquisa e startups parceiras dessas grandes empresas apareciam como coautoras em publicações científicas, elas foram quase ausentes nos mapas de titularidades de patentes, apontando para uma relação de subordinação dessas instituições em relação às empresas líderes. 

Mas embora a geração e a propriedade tecnológica ainda estejam concentradas em determinadas instituições majoritariamente localizadas no Norte Global, Alves (2022) destacou que as firmas que participam dessas redes e acessam fontes externas de conhecimento – ou seja, são receptoras da transferência de tecnologia – não devem ser consideradas passivas, dado que essa absorção requer um volume expressivo de conhecimento prévio e capacidades tecnológicas. 

Ainda que as características acima reflitam os sistemas farmacêuticos nos quais as empresas são de propriedade privada e movidas pela busca da lucratividade, em Cuba, país no qual todas as empresas são estatais, parcerias de diversas naturezas, tanto entre instituições nacionais quanto com do exterior, também são observadas. 

Visando compreender esse universo, este trabalho analisa acordos de instituições cubanas no setor farmacêutico, a partir de informações disponíveis na base de dados Cortellis Generics Intelligence – módulo Deals.[2] O texto apresenta as principais instituições participantes por nacionalidade e atividade principal de atuação, assim como as áreas terapêuticas e os tipos de acordos, a partir de definições originárias da base citada. Foram identificados 36 acordos envolvendo instituições cubanas, realizados entre 1995 e 2020[3]

A experiência cubana pode trazer reflexões ao caso brasileiro, considerando que em ambos os países existem laboratórios públicos produtores de medicamentos, enquanto na maior parte das nações tais laboratórios se concentram somente na geração de novas tecnologias. 

Resultados

O ponto inicial de análise refere-se à “propriedade” da tecnologia. Os atores envolvidos nos acordos são classificados pela base de dados como “instituição principal” e “instituição parceira”, sendo a “principal” a detentora do ativo negociado, que atua como licenciadora, vendedora ou provedora de serviços, e recebe recursos ou ativos da “instituição parceira”. 

Apesar de a literatura apontar que instituições de países desenvolvidos são as principais detentoras das tecnologias, enquanto as de países em desenvolvimento, com menor capacidade de gerar inovações, são majoritariamente receptoras (Rikap, 2019), nos acordos envolvendo as instituições cubanas identificados neste trabalho, o oposto foi observado: em sua maioria (27 acordos), as instituições cubanas atuaram como “principal”, ou seja, eram as detentoras do ativo ou da tecnologia comercializada. Em 13, atuaram como instituições parceiras.

Relativamente aos países da América Latina e do Caribe, a participação cubana entre instituições “principais”, em número de acordos, foi superior à observada na maioria dos países de porte similar. Apenas naqueles de maior porte territorial e econômico, como Brasil, México, Argentina, Chile e Colômbia, foram identificados números mais elevados de acordos. (Gráfico 1).

Gráfico 1

Número de acordos por país de localização da instituição principal América Latina e Caribe

Fonte: Cortellis Deals. Elaboração própria.

* Incluem os acordos identificados em toda a base de dados. 

Em número de acordos, três instituições se sobressaíram: Centro de Immunologia Molecular (CIM); Instituto Finlay e Centro de Ingenieria Genetica y Biotecnología (CIGB). O CIM é uma instituição biotecnológica que direciona sua pesquisa básica, desenvolvimento e fabricação de produtos para o tratamento de câncer e outras doenças autoimunes, possuindo produtos com registro sanitário em 100 países, capacidade exportadora com experiência em mais de 30 países e diversas joint ventures. Já o Instituto Finlay se dedica ao desenvolvimento e à produção de vacinas, incluindo a Soberana, usada contra a Covid-19. O CIGB é uma empresa de produtos biofarmacêuticos preventivos, terapêuticos e de diagnóstico para os setores biomédico, agrícola e industrial; produz anticorpos monoclonais e uma ampla gama de produtos, entre os quais a vacina Abdala, também contra a Covid-19. 

Todas são vinculadas à Biocubafarma, grupo que reúne empresas biotecnológicas e farmacêuticas cubanas cujas atuações são especializadas por tecnologias, tipos de medicamento e/ou enfermidade, o que promove a cooperação e limita a concorrência entre elas (Tabela 1).

Tabela 1: Acordos do setor farmacêutico de instituições cubanas, por tipo de instituição (“principal” e “parceira”)

Tabela 1

Fonte: Cortellis Deals. Elaboração própria.

A diversidade de países com os quais as instituições cubanas interagem é também um aspecto relevante da análise. Nos 13 acordos em que as instituições cubanas aparecem como “parceiras”, as parcerias foram realizadas com instituições de oito países, um deles o Brasil. Já naqueles em que as instituições cubanas eram as detentoras dos ativos (instituições cubanas como “principais”), os acordos foram feitos com instituições de outros 14 países, entre eles também o Brasil. Diversos países desenvolvidos, como os Estados Unidos, foram receptores de tecnologias ou ativos cubanos. Em quatro casos (Tabela 2), foram observados acordos intranacionais (entre duas instituições cubanas).

Tabela 2: Número de acordos de instituições cubanas por país de interação

Tabela 2

Fonte: Cortellis Deals. Elaboração própria.

Os acordos com instituições brasileiras envolveram a fabricação e o fornecimento da vacina polissacarídica meningocócica em países africanos por Bio-Manguinhos e Instituto Finlay, e o uso de anticorpo monoclonal do CIM pela empresa Eurofarma.

Em relação aos tipos de parceria, foram identificadas 12 categorias, agrupadas a partir de adaptação da classificação apresentada em Chaves et al. (2024): estratégias patrimoniais; atividades de P&D; fabricação ou fornecimento de medicamentos e direitos exclusivos de patentes (Tabela 3). A maior parte dos acordos (19) concentrou-se entre as “atividades de P&D”, especificamente nas categorias relacionadas a P&D inicial e licenças para desenvolvimento ou comercialização de medicamentos, independentemente das instituições cubanas atuarem como principais ou como parceiras. 

Nos acordos envolvendo estratégias patrimoniais, especialmente o estabelecimento de Joint Ventures, as instituições cubanas destacam-se entre as principais. Tais resultados são similares aos encontrados, por exemplo, no Brasil, onde atividades de P&D e estratégias patrimoniais tiveram maior relevância se comparadas a acordos envolvendo patentes ou àqueles exclusivos a fabricação e fornecimento de medicamentos (Chaves et al., 2024).

Tabela 3: Número de acordos de instituições cubanas: por tipo de instituição e por tipo de acordo

Tabela 3

Fonte: Cortellis Deals. Elaboração própria.

Por último, a tabela 4 apresenta as áreas terapêuticas e indicações envolvidas nos acordos. Observa-se uma predominância de tratamentos para infecções diversas, incluindo doenças negligenciadas como tuberculose e vacina contra a Covid-19, e tratamentos contra o câncer. As duas áreas conjuntamente incorporaram 77,7% dos acordos. Comparativamente, no Brasil a diversidade de áreas terapêuticas identificadas foi mais elevada, ainda que infecções também tenham predominado como a principal área (Chaves et al., 2024).

Tabela 4: Número de acordos de instituições cubanas: por tipo de instituição, área terapêutica e indicações.

Tabela 4

Fonte: Cortellis Deals. Elaboração própria.

Limitações

A base de dados Cortellis Generics Intelligence – módulo Deals mapeia e consolida informações sobre acordos do setor farmacêutico em nível global. Todavia, predominam acordos envolvendo instituições de países desenvolvidos – os dez principais países em número de acordos estão presentes em 94,4% dos acordos identificados (Chaves et al., 2024). Além de a base não incluir todos os acordos existentes entre instituições do setor farmacêutico (apenas os que foram possíveis identificar), não há informações sobre a representatividade dos que foram mapeados em relação ao total existente em cada país. 

No caso da parceria entre Cuba e Brasil, o número de acordos apresentados está subestimado. Portanto, considera-se que os acordos disponibilizados na base são uma amostra de um universo mais amplo, que pode ser mais representativo para alguns países em relação a outros. 

Apesar dessas limitações, dada a escassa existência de informações sobre transferência de tecnologia e demais parcerias disponíveis, a análise agrega ao apresentar, ainda que parcialmente, características dos acordos e das instituições envolvidas. Entre essas, destacam-se a participação de instituições cubanas como detentoras de ativos ou tecnologias (instituição principal), a predominância de acordos que envolveram atividades de P&D e a ênfase em doenças infecciosas e negligenciadas. 

[1] Técnica de Planejamento e Pesquisa do CTS/Ipea.

[2] Acesso em 5 de julho de 2022.

[3] A base de dados identificou 119.821 acordos envolvendo instituições de 146 países entre 1964 e 2022. Mais detalhes, ver Chaves et al. (2024).

* Esse texto faz parte de uma série de artigos sobre instituições farmacêuticas cubanas realizados a partir de visitas, entrevistas e pesquisas complementares, e financiado pelo Ministério da Saúde por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) n. 06, de 2022.