Em entrevista, professor da UFRGS expõe desafios de processos participativos

30/05/14

Em entrevista ao site Participação em Foco, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Marcelo Kunrath, pós-doutor pela Watson Institute for International Studies/Brown University, apresentou importantes contribuições acerca do campo que envolve as instituições participativas, tendo em vista o contexto da recente formalização da Política Nacional de Participação Social feita pelo governo e os processos que partem de um fenômeno relativo aos processos democráticos no país.
Ele adverte que não se pode culpar a própria existência da democracia por todos os possíveis obstáculos da subrepresentação, e embora perceba-se uma certa descrença quanto às expectativas que se criaram em volta dela ao longo dos anos, os estudos recentes de instituições participativas têm curiosidade em observar o contexto do que elas fazem e as repercussões que variam a partir da cautela que se tem no enfoque dessas observações que se inserem em fronteiras entre poder público e demandas particulares de setores da sociedade.
Contrapõe-se, portanto, à investigação do debate que estava mais centrado no papel normativo e político-democratizante das instituições participativas. "Hoje os estudos têm se deslocado muito mais no sentido de abordar o que elas fazem, politicamente, em termos de qualidade de vida etc", explica.  Um grande desafio que surge, de acordo com o pesquisador, é o de "repensar a proporcionalidade estatal e uma ação mais profunda para além da democracia representativa".
O professor desenvolve pesquisas nos temas democracia, cidadania, conflitualidade, participação social, orçamento participativo, conselhos de políticas públicas, associativismo, movimentos sociais e engajamento militante e coordena o grupo de pesquisa "Associativismo, Contestação e Engajamento". Confira a entrevista.


Participação em Foco: Pesquisas e artigos acadêmicos sobre instituições participativas nos últimos anos tendem talvez a estar resignados ou mesmo pessimistas quanto às mesmas? Existe a ideia de que estudos deste campo têm observado de modo contínuo um certo esgotamento das possibilidades de se abranger o papel das instituições participativas?

Marcelo Kunrath: Talvez algumas perspectivas tenham se esgotado nesse campo. Na verdade, a discussão das instituições participativas, que até nem se chamavam instituições partipativas no passado, elas nascem muito dentro de um debate sobre a democratização no Brasil e um conjunto de expectativas que se tinha em relação ao papel dessas instituições que contribuiriam para a democratização, para o aprofundamento da democracia no país. O que me parece que se esgotou, ou pelo menos o que está sendo hoje problematizado, é que potencial democrático inerente às instituições participativas mostra limites e obstáculos dessas instituições em alcançarem esses resultados esperados, o que acabou levando a um declínio dessas instituições. Acredito que não seja um campo de estudo que tenha perdido relevância. Gostemos ou não, podemos pensar que as instituições não cumprem o que se esperava delas, mas elas estão aí, envolvendo milhares de pessoas em toda uma arquitetura institucional de participação. Hoje os estudos têm se deslocado muito mais no sentido de abordar o que elas fazem, politicamente, em termos de qualidade de vida etc. Isso não se esgotou, ao contrário. Antes o debate estava mais centrado no papel normativo e político-democratizante das instituições participativas e pouco se estudou sobre a própria efetividade. Esse campo é extremamente rico, que articula com a discussão de políticas públicas, está produzindo e há muita coisa interessante sendo produzida.

Participação em Foco: Tendo em vista essa perspectiva, o que você pensa sobre a Política Nacional de Participação Social incentivada pelo governo e cujo decreto foi formalizado recentemente?

Marcelo Kunrath: Eu não cheguei a ver a política, mas tenho ouvido sobre a criação de um sistema nacional de participação. Existem tensões, pois a institucionalidade participativa se adaptou a uma estrutura que é setorializada, tem uma fragmentação muito grande e há pouca conexão em diferentes setores de políticas públicas. Penso que esse sempre foi um desafio. Em Porto Alegre, por exemplo, quando foi instituído o orçamento participativo, estava associado a uma ideia de reforma administrativa, que não fosse setorializado, mas integrado e centralizado na alocação de recursos; mas nunca aconteceu, por vários motivos. Parece-me que hoje isso é uma dificuldade, se formos pensar em escala nacional, muito maior, de como construir um sistema de participação integrada, em conferências, conselhos, ouvidorias e órgãos de controle que se articulem,quando existe uma estrutura de Estado que opera de forma fortemente setorial. Isso implica relações de poder, distribuição de recursos. Tenho curiosidade de saber como essa proposta será construída nesse sistema, com todos os custos e implicações políticas disso. Ao mesmo tempo, essa lógica setorializada é importante para atores que querem colocar suas causas na agenda.

Participação em FocoO que você pensa sobre abordagens de que as instituições participativas não passam de mecanismos de fomento a grupos de interesse e de aparelhamento e gastos estatais?

Marcelo Kunrath: Não vejo como problemático pensar que os atores estão participando a partir de determinados interesses; aliás, acredito que não existe ação desinteressada. Não precisa ser um interesse de ganho, pode ser de controle social, mas há um interesse que os move. Acredito que talvez os mecanismos que conseguem obter um melhor êxito são aqueles que conseguem conciliar uma resposta a interesses e demandas objetivos, ao mesmo tempo fazendo discussões que transcedem a mera distribuição de recursos. Dificilmente atores que têm recursos escassos, principalmente o tempo, vão investir em fóruns de participação se esses fóruns, de alguma forma, não responderem com alguma concretude a esses interesses. O grande sucesso do exemplo de Porto Alegre, no orçamento participativo, é que ele tinha mecanismos que dava respostas muito concretas que a população trazia. Então não vejo problema ou demérito nisso, acho que é algo mesmo constitutivo das instituições.

Participação em Foco: Você considera importante que a participação social seja estimulada pelo Estado, ou este fenômeno deveria emergir apenas de modo espontâneo na sociedade?

Marcelo Kunrath: Sobre a indução do Estado, quando se cria um mecanismo de participação e esse mecanismo oferece respostas dentro de um determinado setor, isso vai induzir processos em que as pessoas se organizam para atuar nesses fóruns. No orçamento participativo, estimulou-se um tipo de organização associativa, de bairro, porque era a forma que as pessoas tinham para participar daquele processo. É complicado o Estado construir a participação em si, mas dentro do próprio Estado há pessoas que vêm dos movimentos e organizações sociais. Então, em certa medida, têm também o interesse em trazer essas organizações e movimentos e de estimular a participação. É difícil pensar que haverá um processo neutro, puro e espontâneo da sociedade que se organiza para intervir. Historicamente, a dinâmica é muito mais complexa, até porque é difícil achar um movimento ou uma a organização completamente descolada do Estado.

Participação em Foco: O que você pensa sobre a abordagem de que existe uma desconfiança de que a existência de instituições participativas e interfaces socioestatais – tais como conselhos, conferências, audiências públicas, ouvidorias, consultas públicas etc. - não representam, de fato, os interesses de toda a sociedade?

Marcelo Kunrath: O problema é 'o que são os interesses da sociedade'. Claramente, as instituições participativas estão relacionadas a um certo modelo, a uma certa compreensão de responder, intervir e ter uma resposta. O próprio nascimento do OP, ele em certa medida visava fortalecer essas organizações, na medida em que elas respondiam a suas demandas, a partir de uma certa ideia de que essa sociedade civil organizada era representativa da sociedade. Hoje sabemos que é algo mais complexo. Há uma série de interesses que estão excluídos dos processos de participação. Por exemplo, em políticas de desenvolvimento territorial, há comunidades tradicionais e quilombolas em que essas pessoas têm dificuldades de inserção e participação e cujos interesses não têm expressão nos fóruns participativos. Sempre tem esse dilema de que quem não consegue se organizar, ou se organizar nos moldes em que a instituição participativa demanda, ou vai ser excluído ou vai ficar subrepresentado, e daí haverá uma série de desigualdades nessas instiuições. Mas a questão é como criar mecanismos para enfrentar essas desigualdades, e não a ideia de que se a representação dos interesses é um problema, deveria haver uma fórmula pura dos interesses da sociedade. Há uma discussão sobre mecanismos da internet, como as consultas, se essa forma individualizada seria mais expressiva e representativa que a representação via organizações e instituições participativas.

Participação em Foco: Quais desafios você percebe para as instituições participativas e movimentos sociais hoje?

Marcelo Kunrath: Tem o desafio não só a questão do sistema da participação, mas a relação dessas instituições com toda a institucionalidade política, representativa tradicional. Como essas diferentes possibilidades de expressão política dialogam. Por vezes, pode haver uma certa deslegitimação de certos fóruns participativos que se contrapõe em diferentes instâncias. Lidar com essas relações complexas construídas desde a redemocratização, onde se preservam questões tradicionais do Estado e se introduzem inovações radicais do ponto de vista democrático, tudo isso convive conjuntamente com tensões. Acho que é um grande desafio repensar a proporcionalidade estatal e uma ação mais profunda para além da democracia representativa.

Participação em Foco: Sobre a discussão envolvendo o processo participativo em um contexto externo, o que significa a "transnacionalização da sociedade civil brasileira"? Ela é relevante ou pode ser desconsiderada para a compreensão dessas relações em âmbito nacional?

Marcelo Kunrath: Acho que hoje há atores que operam em várias escalas. Existe uma dinâmica, um conjunto de processos em escala transnacional que acaba tendo uma presença muito forte, inclusive em processos locais muito claros. Acho que se tem uma ruptura. 2013 no Brasil trouxe uma ruptura com um certo diagnótico que esteve presente na própria discussão das instituições participativas de que a difusão de mecanismos de participação institucional que abrissem oportunidades para a sociedade civil se expressar institucionalmente tenderia a uma diminuição da contestação extra-institucional. Ou seja, que movimentos sociais, organizações da sociedade civil tenderiam cada vez mais a recorrer menos a protestos,conflitos, ocupações e manifestações na medida em que fossem incorporadas à institucionalidade democrática. O que 2013 mostra é que "não". O Brasil, que pode ser considerado um dos campeões mundiais de instituições participativas, tem toda uma conflitualidade que não se expressa institucionalmetne e irá se expressar nas ruas. Isso significa um fracasso das instituições participativas? Não; me parece que não. Mas significa que existe um conjunto de demandas, interesses e conflitos sociais que transcendem a capacidade de incorporação política das instituições, e que vão usar a rua dentro de um contexto global onde a contestação teve centralidade. O Brasil de 2013 não é Egito, não é Turquia, não é Tunísia,não é Chile, não é os Estados Unidos, não é a Espanha. O processo de 2013 tem a ver com uma série de especificidades que tem a ver com o Brasil, com a dinâmica político-partidária no Brasil, com a forma como os conflitos sociais estão estruturados no Brasil, com os interesses de classe e disputas no Brasil. As literaturas de movimentos sociais já chamavam a atenção de que a democratização não significa o fim da contestação; ao contrário, as sociedades democráticas têm mais tendência a ter movimentos sociais do que as sociedades autoritárias.