Pesquisadora da UFMG explica relações entre desenho e instituições democráticas

24/07/14

O livro Desenho institucional, democracia e participação: Conexões teóricas e possibilidades analíticas será lançado no encontro acadêmico Anpocs, em outubro deste ano. Um dos organizadores, Eleonora Schettini (UFMG), ajudou a esclarecer o assunto em entrevista concedida ao Participação em Foco. Confira abaixo.

Participação em Foco: Você poderia explicar porque é importante estudar o desenho institucional para entender a efetividade ou desempenho das instituições da democracia?

Eleonora Schettini: Os desenhos de instituições expressam as intenções, os propósitos das escolhas sobre o funcionamento e resultados que se esperava com a criação ou o aperfeiçoamento de determinadas instituições. O estudo desses desenhos possibilita entender quais seriam esses propósitos, estabelecendo os parâmetros para se avaliar a efetividade e/ou o desempenho das instituições. No caso de instituições políticas, esses desenhos expressam como o poder será exercido e, neste sentido, evidenciam o quanto ele poderá estar compartilhado ou, inversamente, o quanto estará concentrado. Evidencia, também, os procedimentos que darão legitimidade às decisões tomadas, o que é essencial em regimes democráticos. Os desenhos de instituições democráticas, portanto, nos permitem entender o quão inclusivas elas são, a pretensão de legitimidade que elas sustentam e o que podemos esperar quanto aos resultados da ação institucional.

Participação em Foco: A sinopse explica que o livro "um esforço coletivo de refletir sobre as inovações democráticas brasileiras a partir de uma referência comum: a relação entre desenho institucional, democracia e participação". Quais são essas inovações?

Eleonora Schettini: Principalmente as instituições criadas no âmbito do Estado ou que possibilitam a inter-relação ente Estado e sociedade e que se organizam tendo a participação da sociedade como premissa. Essas inovações institucionais têm sido desenhadas e redesenhadas nos últimos anos, a partir da experimentação e da avaliação de seus resultados. É o caso de conselhos, conferências, comitês, orçamentos participativos (no Executivo), audiências públicas, seminários legislativos, comissões de participação popular (no Legislativo) criadas nos três níveis de governo, com diferentes intenções e desenhos.

Participação em Foco: Que conclusões surgem no livro por meio da investigação das conexões entre desenho institucional, democracia e participação?

Eleonora Schettini: Talvez a principal conclusão seja a de que a democracia, para se efetivar e ser incorporada como um valor social, político e cultural em toda a sociedade brasileira, precisa contar, cada vez mais, com diferentes instituições cujos desenhos promovam mais participação dos diferentes segmentos sociais nos processos que geram decisões que os afetam. Esses desenhos devem ser suficientemente flexíveis, para que as instituições possam adaptar-se às mudanças contextuais, mas robustos o bastante para que permaneçam e resistam às tentativas de desmantelamentos. Também fica claro que apenas ter desenhos bem formulados não é suficiente para que os resultados democráticos sejam alcançados. Há um forte componente cultural, que ainda persiste na sociedade brasileira, de relações de subordinação de governados a seus governantes, que precisa ser superado em direção à cultura de direitos de cidadania e de entendimento do governante como um servidor público que deve orientar sua atuação numa perspectiva republicana. É uma longa construção! Isto aponta para a necessidade de se fortalecer a sociedade nos seus processos de organização e mobilização social e política, além de se ter governantes comprometidos em ampliar e fortalecer a participação democrática como um propósito civilizacional e não apenas como referência momentânea.

Participação em Foco: A partir das investigações de pesquisa reunidas na coletânea, é possível avaliar as causas ou pontos de proximidade ou afastamento entre o desenho das instituições participativas e as demais instituições existentes no país?

Eleonora Schettini: Podemos dizer que o Poder Executivo, nos três âmbitos da federação, é o que tem criado mais oportunidades de aproximação com a sociedade, por meio de diversas inovações institucionais, muitas delas analisadas na coletânea, como conselhos, comitês, OPs. Ele é seguido por alguns Legislativos (federal, estaduais e municipais), que têm buscado novas formas de interação que venham a aproximar legisladores e sociedade. O estudo sobre a Assembleia de Minas Gerais é exemplar deste processo. O Judiciário ainda não avançou no sentido de interagir com a sociedade da forma como os outros dois poderes têm buscado fazer. Ainda assim, não se pode dizer que as instituições participativas e as instituições mais tradicionais do sistema político brasileiros atuem proximamente. Muitas vezes elas não interagem, seja porque os seus desenhos não prevêem isto, seja por resistências mútuas, seja por disputas por espaços de poder ou mesmo incompreensão quanto aos seus papéis e as possibilidades de complementação. Há casos em que o Legislativo, por exemplo, resiste fortemente a interagir e partilhar com conselhos a decisão sobre políticas públicas, como ocorreu com a Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, e há casos em que ocorre uma intensa e profícua aproximação, como é o caso da Comissão de Participação Popular da Assembleia de Minas Gerais, que têm acolhido sugestões e viabilizado emendas ao orçamento estadual oriundas dos conselhos.

Participação em Foco: Há indícios de que as relações entre desenho institucional, democracia e participação influenciam as políticas públicas?

Eleonora Schettini: A maioria das inovações institucionais que estudamos foi criada com o intuito de propiciar a participação da sociedade nos debates e/ou nas decisões sobre políticas públicas. Seu âmbito de atuação é, portanto, restrito e direcionado a áreas de políticas públicas, como saúde, meio ambiente, assistência social, educação. A efetiva influência dessas instituições, no entanto, não pode ser afirmada de forma genérica: há variações importantes relacionadas ao tamanho do local avaliado (conforme porte populacional), à diversidade e vivacidade do associativismo, à existência prévia de atores sociais envolvidos com a área, à disposição dos governantes em partilhar os processos decisórios sobre as políticas com a sociedade. Há, portanto, um conjunto de variáveis que interferem nesses resultados. Ainda assim, pode-se afirmar que há casos em que a política pública foi fortemente influenciada por essas instituições e talvez o mais significativo seja o da política de assistência social. Importantes mudanças na organização desta área, no seu financiamento, na sua regulação decorreram de decisões tomadas em conferências nacionais realizadas nos últimos 10 anos e que foram implementadas pelo Executivo federal.

Participação em Foco: Qual o papel da burocracia e das instâncias de articulação federativa nas políticas sociais?

Eleonora Schettini: A burocracia pública precisa estar preparada para interagir com a sociedade, uma vez que a formação da maior parte dos técnicos que atuam nos governos não inclui o desenvolvimento de habilidades e competências próprias para esta interação. A burocracia tem um importante papel no desenho e na efetivação de instituições participativas, mas também pode minar todos os esforços empreendidos nesta direção. Sua competência técnica precisa ser aliada a habilidades políticas, o que indica a necessidade de que haja gestores públicos com perfil diferenciado do usual.

No que se refere às instâncias de articulação federativa, como Comissões Intergestores da saúde e da assistência social, considero que têm um papel fundamental: propiciar a formulação de pactos entre gestores dos três níveis da federação que, respeitando a autonomia dos entes federados, produzam políticas públicas que assegurem os mesmos direitos, no mesmo padrão de qualidade, a qualquer cidadão brasileiro. São elas que possibilitam que sistemas nacionais de políticas públicas, como o SUS e o SUAS, tenham alguma unidade num pais continental como o nosso.

Participação em Foco: Por que os sistemas deliberativos são relevantes para as decisões em políticas públicas?

Eleonora Schettini: Sistemas deliberativos são constituídos por diferentes espaços de debate e de decisão acerca de políticas públicas, espaços que de alguma forma se conectam, ainda que nem sempre o façam ao mesmo tempo. A ideia de sistemas, portanto, aponta para uma diversidade de atores, com motivações e razões diferenciadas e preocupações em torno de temas comuns, que trocam entre si informações e opiniões, traduzem vontades de segmentos e buscam soluções para problemas públicos. Um sistema deliberativo de política pública, portanto, é composto por vários espaços que têm finalidades diferentes e que são constituídos por atores diversificados, que se conectam com intensidade variada. Temas e problemas são colocados em público e debatidos, soluções são construídas e/ou decididas, ações são efetivadas e testadas em diferentes espaços. A legitimidade das decisões e das ações da política pública decorre destas interações, do fato de que as razões de todos os envolvidos puderam ser apresentadas e debatidas e foram levadas em consideração nos processos decisórios que ocorreram nessas diferentes instâncias.

Participação em Foco: O que você pensa sobre o reconhecimento que o tema adquiriu no debate público este ano, seja nos meios de comunicação ou no meio acadêmico, após a publicação do decreto que institui a Política Nacional de Participação Social?

Eleonora Schettini: Para mim, o mais interessante nesta história toda é o desconhecimento de alguns importantes atores sociais e principalmente políticos do processo de criação e funcionamento de inovações institucionais que contam com a participação cidadã que vem ocorrendo no país desde a Constituição Federal de 1988 e de leis que regulamentaram os artigos constitucionais. Na verdade, o Decreto expressa um conjunto de ideias e proposições normativas que vem sendo gestado há muito tempo, inclusive com a participação da sociedade e da própria academia. Como todo ato normativo, pode ter a necessidade de aperfeiçoamento, mas isto não lhe tira o mérito de sistematizar e organizar as formas de participação institucionalizadas que foram sendo estabelecidas nas mais diversas áreas de políticas públicas. De tudo isto, considero como o mais relevante o fato de que o tema da participação política sob formas que não as tradicionais (partido, eleições, voto) esteja em evidência, gerando possibilidades de aprofundamento democrático.