Estudo do Ipea mostra que a participação da sociedade nos Conselhos de Segurança Pública ainda é uma realidade distante

Conselhos: para dar mais do que apenas conselhos

Revista Desafios do Desenvolvimento, 2015. Ano 12. Edição 84, 16/10/2015.

 

Caetano Manenti

Já se passaram 26 anos desde que Sandro Santos terminou seu curso na Academia de Polícia para se tornar mais um policial militar do estado do Rio de Janeiro. Hoje, atuante conselheiro da Segurança Pública fluminense, ele recorda: “Naquele tempo, era inimaginável que as universidades e seus pesquisadores tivessem acesso ao universo policial. Era uma época em que se dizia que a segurança pública era uma questão das polícias”. Além dos oficiais, políticos importantes – provavelmente, sem qualquer ingenuidade – também jogavam todo esse peso sobre as fardas. Era o mais fácil a fazer para manter a população longe do debate.

No entanto, novos ares sopravam no fim dos anos 1980. Se não atingiram ainda as tropas, pelo menos alcançaram os marcos legais que permitiram a participação dos cidadãos comuns em diferentes áreas da Administração Pública. Mérito da Constituição de 1988, que pavimentou o caminho da criação de inúmeros conselhos Brasil afora. Se na educação, na saúde ou na cultura a criação desses espaços ainda é algo difícil de deslanchar, a construção de ambientes democráticos para debater o mais pesado dos assuntos nacionais, a Segurança Pública, trata-se de tarefa ainda mais dura. Sem qualquer cultura do debate dentro das polícias, por muito tempo foi impossível o diálogo, embora já houvesse, como no estado de São Paulo desde 1985, decretos criando Conselhos Comunitários.

Na década de 1990, ainda com muitos fantasmas da ditadura escondidos nos armários, pouco se avançou. O noticiário – recheado de casos de abusos policiais (Candelária, Diadema, etc.) – e o bangue-bangue nas ruas, especialmente em comunidades pobres, pelo contrário, acentuavam a discórdia entre comunidades e forças policiais. A literatura internacional especializada dava pistas e, enfim, as polícias brasileiras perceberam a armadilha que era carregar, sozinhas, todo o fardo da Segurança Pública nacional: “Quando você particulariza um problema tão complexo para apenas uma instituição, se algo der errado, toda a instituição terá dado errado também”, destaca Sandro, hoje capitão reformado da PM-RJ.

Foi nesse contexto que os discursos mudaram nas cúpulas das maiores secretarias de Segurança do país. Entrava em cena a política da Polícia de Proximidade, um conceito amplo que carrega um sonho, ainda hoje utópico: o de criar fortes vínculos comunitários entre a sociedade civil e as polícias.

Para se ter uma ideia de até onde esse discurso já chegou, em abril de 2015 a ONG Viva Rio publicou um caderno em que o comandante-geral da PM-RJ, coronel Alberto Pinheiro Neto, registrava: “O objetivo da Polícia de Proximidade é recuperar a legitimidade e resgatar relações deterioradas. O objetivo não é focar apenas em redução dos índices de criminalidade, sem ouvir a população. Não queremos mais a polícia direcionada somente em caçar usuários de drogas, e, sim, a polícia que seja realmente próxima. Não é a proximidade física, psicológica e emocional, mas uma proximidade dos ideais republicanos. É um sonho não só nosso, como policiais, mas, acima de tudo, como cidadãos”.

 

O ESTUDO

Cientista político e sociólogo, Almir Oliveira Júnior é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea em Brasília e, curioso pelo funcionamento dos fóruns participativos na área da segurança, coordenou um estudo que buscou respostas em quatro capitais brasileiras (Brasília, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro). O resultado da pesquisa, em breve, se transformará em um livro e, a ver pelos relatórios, será fundamental para o avanço da democracia sobre a segurança pública ou – tão importante quanto – sobre as polícias em si.

Logo no início de uma longa conversa, Almir se mostrou insatisfeito com o que constatou. “A área da segurança pública, comparando com saúde, educação, transporte, infraestrutura, é a que está mais atrasada em estratégias participativas. Para se ter uma ideia, houve apenas uma conferência nacional de políticas públicas de segurança”, lamenta o cientista.

A pesquisa mostra que, nas organizações policiais brasileiras, não houve um avanço do discurso para a prática. “Por parte das polícias, esses espaços de participação são ocupados por oficiais e outros cargos de alto escalão. Isso se traduz em ações efetivas? Isso transforma as instituições policiais? Gera processos de aprendizado? Observamos que não. A transição é muito difícil. Não há pelo policial de rua uma valorização do “paisano” (cidadão comum) como alguém que pode melhorar sua atividade de deter a criminalidade”.

O estudo do Ipea investigou as duas mais importantes iniciativas em relação a conselhos participativos na área de segurança. Trata-se dos Conselhos Comunitários de Segurança, os Consegs, e ainda os Conselhos Estaduais de Segurança Pública.


OS CONSELHOS COMUNITÁRIOS

Os Conselhos Comunitários são entidades circunscritas em pequenas regiões – muitas vezes coincidentes com os limites precisos de atuação dos batalhões da Polícia Militar. Eles vêm sendo implementados – com diferentes ritmos entre as cidades pesquisadas – há quase três décadas. Os regulamentos destes conselhos, embora também variem de estado para estado, apontam para as entidades como canais privilegiados pelos quais as secretarias de Segurança podem “auscultar” a população.

Sandro Santos, o policial reformado do início da matéria, hoje é sociólogo e trabalha na ONG Viva Rio. Para ele, a previsão da existência desses espaços é fundamental para o avanço da segurança pública no Brasil. No entanto, ele observa: “É estranho que algo que envolva a participação social seja fomentado pelo Estado. É estranho que o Estado seja a locomotiva que puxe esse processo”.

Os Conselhos Comunitários são apenas consultivos, sem poder deliberativo. Reúnem, pelo lado do poder público, oficiais da PM da região, delegados e outros altos cargos da Polícia Civil, e, pelo lado da sociedade civil, associações comerciais e moradores da área.

Como se pode imaginar, a correlação de forças entre polícias e a população é a questão central do debate sobre a efetividade do órgão. O pesquisador Almir Júnior descreve: “O órgão é um subproduto da polícia. Não tem recursos próprios. Esses conselhos, geralmente, acontecem em espaços cedidos pela própria polícia. (...) O presidente formal dos Consegs é um representante da comunidade, mas quem preside as mesas da reunião é o comandante ou o delegado da área. O próprio desenho da participação dá um protagonismo para a polícia dirigir quais temas serão acatados ou não. Esse seria o maior problema”.

Outro pesquisador do estudo, o sociólogo Anderson Moraes de Castro e Silva, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, propõe uma reflexão anterior. Para ele, as instituições de segurança pública têm um entendimento diferenciado, em relação à ciência política, do significado do conceito ‘participação’: “Para a ciência política, participação envolve instâncias deliberativas, um conselho onde uma pessoa consegue colocar uma demanda e votar a proposta. Para as instituições, participação é o fato de você abrir a palavra. Só o fato de uma pessoa estar presente dando uma sugestão é uma participação? A polícia vai dizer que é. A ciência política vai dizer que não”.

O estudo mostrou também que as demandas e cobranças dos Conselhos Comunitários variam sobremaneira, de acordo com o estrato social no qual a entidade está inserida. Em bairros nobres, como o Leblon, no Rio, ou a Asa Sul, em Brasília, os conselhos pressionam as polícias por mais repressão contra moradores de rua e adolescentes usuários de drogas. O estudo relata, por exemplo, um caso no conselho da área do Leblon em que foi proposta a instalação de máquinas de ponto em esquinas do bairro para fiscalizar a assiduidade dos policiais na região. Em outra situação, na prestigiada Barra da Tijuca, também no Rio, conselheiros doaram as bicicletas para o batalhão da área, provocando um complexo debate sobre os limites destes conselhos.

Em Brasília, a pesquisa se deparou com outra realidade excêntrica: a dos Conselhos Comunitários especiais para segurança específica de alguns segmentos, como os shoppings, os taxistas ou o corpo diplomático. Situações como essas ensejaram novas críticas de Almir Júnior: “A segurança é um bem público que tem de ser igual para todos. Quando você cria segregação deste ou daquele setor, a gente acha pernicioso”.

Já em regiões mais pobres, a comunidade, segundo o estudo, demonstra mais “agradecimento” a gestos simples da polícia, como, por exemplo, em Bangu, no Rio, quando o delegado forneceu o número de telefone da delegacia para os conselheiros. Além disso, de acordo com Almir, nesses ambientes os pedidos da população extrapolam as responsabilidades da polícia, como a instalação de postes de luz ou passarelas.

Major da PM-RJ, Cláudia Moraes também é cientista social, servidora do Instituto de Segurança Pública, órgão da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, e também coordenadora dos Conselhos Comunitários do estado. Entusiasmada com o modelo de conselhos, ela ressalta que a missão desses espaços é solucionar a “tensa relação” entre polícia e comunidade. “Não é simples, então você precisa ter mecanismos. A Polícia Militar presta um serviço. E quem é o seu cliente? Não é o bandido! É a comunidade, é a sociedade. Então, a PM tem de se encontrar com o seu cliente”.

Cláudia conta que a Secretaria de Segurança desenvolveu protocolos de como os Conselhos Comunitários devem proceder em suas reuniões e no momento de registrar seus encontros, mas, devido ao caráter voluntário dos conselheiros, acredita que o órgão não deve cumprir uma dura fiscalização dessas entidades. Para ela, os conselhos comunitários servem como “pedra fundamental” do desenho de uma Polícia de Proximidade. “O espaço é de diálogo, sim. Há falas incisivas nas reuniões, cobranças bem incisivas. Isso é bem-vindo. Isso tem de ser entendido. O conflito não é necessariamente algo ruim. A gente não pode negar o conflito. Quando a gente ia pensar, há 30 anos, alguém questionando a autoridade de um comandante da PM ou de um delegado?”

A major ainda rebate novas críticas do estudo que questiona a polêmica obrigatoriedade de que os membros efetivos dos conselhos não possuam antecedentes criminais. “Não vejo isso como uma questão excludente. Isso funciona em concursos para diversas áreas”, lembrou. Como desafios para o futuro, Cláudia ressalta a importância de incorporar os jovens nas discussões. Hoje em dia, o perfil dos conselheiros registra especialmente homens acima dos 50 anos. Para isso, ela pensa em desenvolver mecanismos de participação pela internet ou mesmo em aplicativos. “Mesmo assim, nada substitui o olho no olho. Muitas questões são resolvidas nesse olhar, nesse compromisso que é gerado na relação olho no olho”.


O desafio de implementar Conselhos Estaduais

A pesquisa também abordou o desenvolvimento de fóruns superiores de discussão, como os Conselhos Estaduais de segurança pública. O objetivo legal desses espaços, registrado em decretos e portarias, é similar ao dos Conselhos Comunitários, ou seja, debater e ajudar os gestores públicos a tomarem decisões. Nesses casos, a composição das entidades é ampliada. A missão é colocar, numa mesma mesa, desde o secretário de Segurança do estado até organizações ativas da sociedade civil, passando ainda por representantes dos Conselhos Comunitários, por outros órgãos da segurança, como as polícias, por outras Pastas da gestão estadual, como a Secretaria de Educação, e ainda por entidades de representação dos trabalhadores do segmento, como os sindicatos de delegados, de policiais rodoviários, associação dos guardas municipais, etc.

Entretanto, a dura realidade é que, como aponta a pesquisa, o país ainda não tem lastro democrático suficiente para fazer desses ambientes pilares fundamentais de um plano de segurança regional ou nacional. Ainda são poucos os estados (casos de Rio de Janeiro, Goiás, Pará, por exemplo) que simplesmente possuem esse espaço constituído, mesmo que a indicação para tal tenha sido assinada pelo ex-presidente Lula no último ano de seu mandato, 2010, quando, por decreto, regulamentou a existência do Conasp, o Conselho Nacional de Segurança Pública

Para servir de exemplo, voltamos ao Rio, que implantou há pouco mais de dois anos o Consperj, o Conselho de Segurança Pública do Rio de Janeiro, objeto da pesquisa do Ipea por 14 sessões no conturbado período de 12 meses, entre a metade de 2013 e a metade de 2014. Como se tratava do primeiro mandato do conselho, o estudo mostrou que houve grande dificuldade para a consolidação do arcabouço institucional.

Uma das questões que exemplificam o caso é a participação de representantes dos Conselhos Comunitários. Mesmo com mais de 60 conselhos como esses funcionando por todo o estado, foi reservada pare eles apenas uma das 30 cadeiras disponíveis. Os trabalhadores da área da segurança também não engrossaram a representatividade da entidade. Na primeira eleição, houve mais vagas do que candidatos e, durante este mandato, alguns dos conselheiros deixaram de acompanhar as reuniões.

Mesmo com problemas e com pouco tempo de história, os conselheiros frequentes também têm elogios a fazer à iniciativa. No caso do Rio de Janeiro, conta o conselheiro Sandro Santos, o órgão levou à mais alta cúpula da segurança do estado duras críticas da comunidade do Complexoda Maré, que sofreu com a ocupação da Força Nacional de Segurança às vésperas da Copa. Outro momento interessante na história do Consperj foi a instalação de uma comissão temporária para avaliar as manifestações das Jornadas de Junho de 2013. Embora recheada de brigas políticas internas, a pesquisa indicou que o espaço serviu, a pedido da própria Polícia Militar, para reflexão sobre a abrangência e a complexidade do fenômeno, ouvindo especialistas e outros diversos atores.

É consenso entre os entrevistados que, mais do que devolver resultados práticos, corroborados por estatísticas criminológicas, os Conselhos de Segurança têm um papel de formação democrática a cumprir. Afinal, democracia não se faz por decreto. A construção a ser feita, ao que parece, é para que, um dia, os Conselhos de Segurança do país sirvam para bem mais do que apenas dar conselhos.

Fonte: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=3174&catid=28&Itemid=39

Acesso à revista: http://www.ipea.gov.br/desafios/images/stories/ed84/pdfs/151016_desafios_84.pdf