Modo de escolha de ouvidor compromete autonomia das ouvidorias

08/04/14

A construção de um mecanismo que comporte a ouvidoria como instância de comunicação entre Estado e cidadãos no uso público da razão, nos dizeres de estudo do Ipea sobre ouvidoria e governança democrática, foi consolidada recentemente em uma minuta de decreto do governo federal com a ideia de construir um sistema nacional de ouvidorias.

Para a concretização da minuta houve, nos últimos dois anos, a possibilidade de participação da sociedade, por meio de consulta pública com internautas, e de especialistas, por meio da realização de seminários.

Além dos limites do uso privado da razão na administração pública, devido à motivação pública que rege os princípios de uma instituição pública, as ouvidorias, no uso público da razão, atuam como correção democrática, explica o estudo do Ipea citado acima.

Para o professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, Fernando Lima Neto, e também pesquisador do Programa de Mobilização da Competência Nacional para Estudos sobre o Desenvolvimento (PROMOB) do Ipea, que analisa a qualidade e autonomia das ouvidorias públicas federais, um quesito que precisa ser alterado é que o decreto não impede que o ouvidor seja nomeado pela autoridade máxima do órgão ou entidade a que se vincula, comprometendo a autonomia da ouvidoria.

Em entrevista ao Participação em Foco, ele fez uma reflexão sobre os desafios futuros deste modelo de instituição, os pontos positivos e negativos da minuta e os critérios que poderão consentir a efetividade de seus princípios normativos. Confira.

 

Participação em Foco: A criação de um sistema nacional de ouvidorias permitirá que haja critérios comuns na concepção e gestão das ouvidorias públicas federais? Por exemplo, a melhor coordenação entre as ouvidorias de órgãos vinculados aos ministérios?

Até aqui, predomina a total ausência de critérios para definir as funções de cada ouvidoria. Os atos normativos, quando existem, são em sua maioria demasiadamente vagos e incongruentes. Isso tende a mudar. O maior desafio para o sucesso do sistema federal de ouvidorias é a efetividade de seus princípios normativos. O distanciamento entre os dispositivos legais que regulam as instituições participativas e a gestão dessas instituições é um problema recorrente na democracia brasileira. Temos, por exemplo, uma das constituições federais mais avançadas em termos de participação social, mas ainda estamos longe de efetivar todo o potencial democrático da Constituição de 1988.

Participação em Foco: Quais serão as principais mudanças advindas da publicação do decreto que cria o sistema nacional de ouvidorias?

Essa pergunta é difícil de responder, pois não há como prever o funcionamento das instituições democráticas. O impacto da criação do sistema federal de ouvidorias para o aprimoramento desse modelo de instituição vai depender da efetiva aplicação das diretrizes legais estabelecidas no decreto que institui esse sistema. Neste sentido, acredito que o maior ou menor sucesso dessa empreitada vai depender também da capacidade da OGU fazer valer essas diretrizes através de um acompanhamento sistemático e permanente da gestão dessas instituições.

Participação em Foco: Haverá melhor integração das ouvidorias aos sistemas de participação social? Como isso pode ser realizado?

O capítulo IV da minuta trata exatamente desse tema ao estabelecer que as ouvidorias podem firmar acordos de cooperação com outras instituições de participação social. No entanto, não há recomendações mais específicas sobre que tipo de acordo poderá ser firmado. No meu entender, o texto poderia ser mais contundente neste ponto para tornar mais efetiva essa possibilidade. Seria preciso qualificar e recomendar expressamente esse tipo de articulação em vez de apenas prever a sua possibilidade.

Participação em Foco: E quanto à autonomia das ouvidorias?

O sistema é um requisito importante para a efetividade do potencial democrático investido nas ouvidorias, desde que assegure condições para sua autonomia política e técnica. Para que isso aconteça, creio ser preciso ainda alguns ajustes. O principal obstáculo para autonomia das ouvidorias é o fato do ouvidor ser nomeado pela autoridade máxima da organização vinculada; o decreto deveria enfrentar essa questão.

Participação em Foco: A minuta do decreto estabelece prazos, por exemplo, o de vinte dias para que a ouvidoria responda às demandas da sociedade. Atualmente já existem prazos ou são dispositivos inéditos?

Esses não são dispositivos inéditos. O estabelecimento de prazos junto às manifestações e a garantia de acesso às informações da instituição vinculada e de seus servidores são previstos em alguns atos normativos de ouvidorias públicas. Se isso de fato acontece, já é outra questão.

Participação em Foco: E quanto à possibilidade de o ouvidor participar das reuniões do conselho de administração do órgão ou entidade pública, "assegurado o direito à voz, sem direito a voto, do art. 9º"?

Considero que este seja um ponto que merece revisão no decreto. Por que estabelecer que, necessariamente, o ouvidor não terá direito a voto? Em outras passagens, como no art. 3º, art. 6º e art. 12º, por exemplo, existe uma ressalva para preservar encaminhamentos previstos nos atos normativos específicos de cada instituição. E se a instituição entender que o ouvidor deva ter direito a voto? Da forma como está, o decreto impede essa possibilidade.

Participação em Foco: O art. 3º, VII, §4º permite denúncias anônimas; isso já é permitido hoje nas ouvidorias?

Algumas ouvidorias asseguram o sigilo da identidade do indivíduo manifestante, mas, em geral, não há disposições específicas sobre o recebimento de denúncias anônimas. Isso, portanto, é um aspecto positivo no texto do decreto.

Participação em Foco: Quais os principais pontos positivos da minuta? E os negativos?

A delimitação de competências para as ouvidorias, como a elaboração de Planos de Trabalho e relatórios ordinários, o estabelecimento de mandato para o cumprimento da função de ouvidor, a fixação de prazos para o exercício do mandato e para o atendimento ao cidadão, a coordenação de um órgão central e o incentivo às atividades de pesquisa estão entre os principais pontos positivos. Quanto aos aspectos negativos, deve ser destacado o fato de o decreto não impedir que o ouvidor seja nomeado pela autoridade máxima do órgão ou entidade a que se vincula.

Como disse anteriormente, a escolha do ouvidor é um dos elementos mais importantes para assegurar autonomia das ouvidorias. Além disso, o artigo 9º, que limita o direito a voto de ouvidores nas reuniões do conselho do órgão, poderia ser reformulado. Acredito que o inciso II do art. 10º também deva ser reformulado, pois a ideia de "desburocratização" confunde o conceito técnico de burocracia – que é um requisito importante para a gestão de instituições democráticas – com o sentido que o senso comum atribui a esse conceito.

Participação em Foco: Você acredita que o decreto entrará em vigor ainda este ano?

Isso vai depender de muitas questões que fogem ao controle de quem está à frente na concepção do sistema. Espero que sim.

Participação em Foco: Qual o diferencial das ouvidorias em relação às demais instâncias de participação social?

O diferencial da ouvidoria é que ela institui um espaço permanente para influência do cidadão no dia-a-dia da Administração Pública. O objetivo deste modelo de instituição não é, por exemplo, contribuir para formação de políticas públicas ou defender setores específicos da sociedade, mas, antes, propiciar ao cidadão um espaço para que ele ajude a aprimorar a gestão das organizações públicas. Isso, claro, é a função ideal. Hoje, há uma distância enorme entre o ideal e o universo das ouvidorias. Espero que a criação do sistema federal consiga reverter ou minimizar esse quadro.