Gangorra agrícola

Gangorra agrícola

Por Liliana Lavoratti , de São Paulo

O sobe-e-desce dos preços no mercado agrícola sempre existiu e se tornou um risco inerente ao negócio, mas a crise financeira mundial agravou essa realidade. Para especialistas, o modelo atual de comercialização agrícola brasileira está em xeque

A crise financeira mundial evidenciou o impacto da gangorra dos preços agrícolas sobre o setor. Os produtores que vinham se beneficiando da maré de preços internacionais altos e commodities valorizadas sofreram, a partir de meados de 2008, retração brusca no valor monetário das mercadorias. Desde março deste ano, porém, há um movimento de retomada de preços de alguns produtos como a soja e o açúcar, mas não se sabe o rumo e a intensidade dessa melhora. Certo é que o sobe-e-desce dos preços no mercado agrícola sempre existiu e se transformou em risco inerente ao negócio. Entretanto, a turbulência econômica potencializou este fenômeno. "A volatilidade de preços é muito alta agora. Para os produtores planejarem sua atividade ficou ainda mais confuso do que já era", diz Junia Cristina Peres da Conceição, técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Embora ajude a melhorar o resultado da balança comercial e traga mais divisas estrangeiras para o Brasil, este momento positivo da inconstância dos preços reforça o que vem sendo defendido há tempos: a necessidade de um novo modelo. "O Brasil precisa de uma política agrícola capaz de englobar as mudanças decorrentes do contexto internacional que atingem até os produtos agrícolas voltados para o mercado interno e protegidos pela política de garantia dos preços mínimos", afirma Junia. Segundo ela, o atual modelo de comercialização agrícola está em xeque e esgotado. "Um novo desenho é mais do que necessário", constata.

A política agrícola brasileira tem períodos muito distintos. Até a década de 1990 era fortemente intervencionista - com crédito rural e garantia dos preços mínimos na comercialização. "Com a abertura da economia, a política de garantia dos preços mínimos deixou de ser executada como antes. Ali começaram as dificuldades de praticar em uma economia aberta um conjunto de regras pensado para outra realidade", comenta Junia. [Leia mais sobre a história da política agrícola brasileira no box da página 58].

Construir uma alternativa adequada aos desafios do momento, no entanto, não é fácil. Os problemas do setor - crise internacional, renegociação da dívida dos agricultores, dentre outros -, estão encadeados, tornando o quadro mais complexo que no passado. Se os preços despencam, a remuneração não compensa os custos. Em 2008, por exemplo, o governo editou medida provisória para regularização de até 2,8 milhões de contratos de crédito rural. Isso representa um saldo devedor de R$ 75 bilhões, cerca de 85% do estoque total da dívida agrícola, calculada em R$ 87,5 bilhões na época - os valores incluem dívidas das décadas de 1980 e 1990 já roladas em anos anteriores.

"Todos têm de cumprir regras, incluindo os produtores: se pegam financiamento, terão de pagar. Mas se na hora de pagar os preços despencam, eles terão dificuldade para quitar a dívida", frisa Junia. Por isso, a questão da comercialização é componente relevante da política agrícola e não deve ser usada para alcançar objetivos de curto prazo, pois pode gerar resultados contrários aos almejados. "A finalidade principal deve ser a garantia de renda ao produtor agrícola e preços mais estáveis para o consumidor", acrescenta Junia.

Com ela concorda o coordenador Científico do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) e professor titular do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Esalq-USP, Geraldo Sant'ana de Camargo Barros. "No curto prazo, o grande problema da agricultura brasileira é o caráter cíclico dos investimentos. O produtor investe quando a renda é alta e assume dívidas que não podem ser pagas nos anos piores que certamente virão. É nessa época também que os fornecedores proveem mais recursos, sempre custosos aos produtores, com a mesma consequência", enfatiza. Ou seja, produtores e credores envolvem-se em transações muito arriscadas. "Resultado: a dívida agrícola não para de crescer e precisa ser continuamente renegociada", completa.

Segundo Barros, a solução deve se iniciar com renegociação definitiva e realista da dívida, com grande alongamento de prazo, suficiente para quitação da dívida sem interrupção de níveis seguros de investimento. "Creio que um programa nacional moderno de administração rural ajudaria muito. Ao mesmo tempo é fundamental que o governo atenda às demandas de investimento científico e tecnológico, a única fonte certa de competitividade no médio e longo prazo", acrescenta o acadêmico.

Um ensaio dessa reformulação começa a ser feito entre governo e representantes de produtores, no âmbito de um grupo de trabalho formado pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Banco do Brasil e ministérios da Fazenda e da Agricultura. "As principais perguntas que devem estar presentes na elaboração de uma nova política agrícola são: como se estabelece o nível de preço a ser garantido; se esse nível de preço é compatível com o orçamento do programa; se os recursos estarão disponíveis na ocasião oportuna; e qual é o impacto dos preços externos na formação dos preços internos", sugere Junia.

Na opinião da técnica do Ipea, além de considerar a integração dos mercados decorrente da globalização, a reformulação das regras atuais deve atribuir um papel mais ativo às ações de comercialização, direcionando o que, quando e como produzir. "A solução não pode ser uma política de preços que corra a reboque, ou seja, espere o problema ocorrer e aí acione a política de preços mínimos", diz. "O produtor precisa de medidas de apoio à comercialização para planejar sua atividade. Nesse sentido, os preços mínimos que eram a regra de intervenção são reajustados, mas sempre estão defasados. Por isso, deixam de ser parâmetros de intervenção", ressalta.

Em 2008, a Secretaria de Política Agrícola do Ministério da Agricultura contou com um orçamento de R$ 2,7 bilhões, aplicados em operações de apoio à renda dos produtores, mecanismos de compras e equalização de preços. O diretor do Departamento de Comercialização e Abastecimento Agrícola e Pecuário (Deagro), José Maria dos Anjos, prevê para este ano que o arroz, o algodão e a soja deverão demandar mais apoio à comercialização. O diretor ressalta que a atuação do governo no apoio à comercialização contribui para manutenção de renda dos produtores, especialmente diante da oscilação de preços dos produtos no mercado. Já as vendas dos estoques ajudam na estabilização dos preços ao consumidor.

A estimativa de renda agrícola das vinte principais lavouras no Brasil em 2009 atingiu, em abril, R$ 156 bilhões, valor 3,2% inferior ao registrado no ano passado. Apesar da redução de renda, o valor estimado este ano é o segundo maior, depois de 2008, desde a série iniciada em 1997. Em relação à estimativa divulgada no mês passado, houve um aumento devido, especialmente, à revisão dos dados de safra realizada pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e IBGE. A diferença de estimativas também ocorreu por falta de informações dos preços da uva.

O vaivém dos preços Na avaliação do coordenador do Cepea, é necessário distinguir as variações de curto, médio e longo prazo dos preços agrícolas no Brasil. Em média, para produtos de origem vegetal e animal, nos últimos 30 anos, os preços agrícolas apresentam uma tendência muito forte de queda, em termos reais. "Essa queda, na verdade, se deu de meados de 1970 a meados de 1990, e foi da ordem de 60%. Desde então prevaleceu certa estabilidade em níveis baixos. Essa tendência geral se deu em escala mundial e deve ser atribuída ao aumento de produtividade e eficiência. Creio que os preços continuarão fortemente vinculados ao mercado internacional", analisa Barros.

A abrupta alta a partir de meados dos anos 2000 foi puxada pela inédita aceleração da demanda, decorrente do crescimento econômico mundial estimulado pelas baixas taxas de juros e dólar em queda. Já a crise, que se iniciou no segundo semestre do ano passado, sugeria uma virada com retorno aos padrões anteriores à crise. Segundo Barros, não há clareza quanto a esse ponto até o momento. "Por um lado, a economia mundial vai muito mal em média; alguns países, como China e Índia, mantêm taxas elevadas para os padrões mundiais, mas com forte queda em relação a seus próprios padrões; as condições climáticas têm prejudicado bastante a produção em certas regiões importantes; o programa de etanol de milho americano está pressionando bastante os preços de outras commodities agropecuárias em geral." Com isso, acontece a recomposição de preços - com destaque para carne bovina, soja e açúcar -, mas não se sabe o rumo desses preços no curto e médio prazos.

"Acredito que, passada a crise, as commodities agropecuárias retomarão os patamares anteriores a ela [2007]; se a retomada dos emergentes for muito forte, então podem-se esperar preços muito altos como imediatamente antes da crise [primeiro semestre de 2008]. Num caso ou no outro, as exportações vão se acelerar, o câmbio pode voltar a valorizar-se e o Brasil vai acumular ainda mais reservas", prevê o coordenador do Cepea.

O economista Fábio Silveira, da RC Consultores, concorda com os efeitos positivos que o País sente com a volta do preço médio internacional das commodities para uma trajetória de valorização - melhoria nas exportações, receita e entrada de divisas -, mas não vê sustentação deste cenário. "Desta vez a alta dos preços das commodities é pior do que a ocorrida em 2008, porque não é motivada pela economia real. No ano passado tínhamos um nível de atividade mais sustentável e ainda assim a bolha de preços de commodities furou drasticamente, ou seja, os preços caíram depois. Agora a alta é pior porque não existe sustentação visível no plano real da demanda mundial das matérias-primas", diz. Ou seja, os preços estão muito altos para um mundo em recessão. "Não há justificativa para essa alta de preços pelo lado da demanda", frisa.

O economista da RC Consultores diz que, o retorno dos preços das commodities a patamares mais elevados aumenta o risco de um recuo maior do preço futuro. "Essa bolha pode durar três, quatro, cinco meses, não se sabe, mas o concreto é que a recuperação da atividade econômica na China tem mais a ver com a expansão da base monetária - a produção do dinheiro e elevação do crédito de forma exagerada para um ambiente recessivo instalado", explica.

Para Silveira, a economia chinesa é incapaz de sustentar essa elevação dos preços agrícolas, pois, embora uma potência em expansão, ainda responde por cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. "A China está sendo usada como pretexto da alta dos preços das commodities agrícolas, mas isso é decorrente de especulação pura", acrescenta. "Como em 2008, quando ninguém acreditou e a bolha acabou furando, neste ano estão fechando os olhos de novo e não acreditando na bolha. Ela existe e é bastante presente no dia a dia da economia mundial."

O desmonte da política de garantia de preços

É a partir da metade da década de 1990 que acontece a desmontagem do Sistema de Garantia de Preços Mínimos. Predominou, na época, a máxima de que a abertura ao mercado externo seria suficiente para garantir o abastecimento interno, prescindindo, portanto, da formação de estoques públicos de alimentos. "Na realidade, a restrição do ponto de vista fiscal, associada à consolidação do processo de abertura comercial, criou um quadro completamente distinto do que ocorria nas décadas anteriores, sinalizando um modelo de desenvolvimento mais liberal e menos intervencionista, com modificações substanciais na condução da política agrícola", conta Junia Cristina Peres da Conceição, técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

O modelo brasileiro passa então a conviver em um contexto de globalização e integração econômica, com ênfase em programas setoriais que pouco levaram em conta as novas regras e os acordos de comércio internacional. "Essas iniciativas foram fracassadas e o padrão sazonal de variação de preços se desfez. Dois exemplos indicam isso: preços mínimos exageradamente altos podem estimular importações de países concorrentes, e o governo federal estará garantindo preços tanto aos produtores domésticos como estrangeiros", analisa Junia. "A abertura comercial pode tornar atraente a exportação na safra, no lugar do armazenamento interno, para importar mais tarde na entressafra", acrescenta.

Em um novo cenário, mas com o velho modelo de política agrícola em prática, ganha destaque a volatilidade de preços, considerada um componente de risco de mercado tanto para produtores quanto para consumidores. A inadequação do sistema atual se expressa, segundo a técnica do Ipea, em várias formulações setoriais e principalmente nos Planos Anuais de Safra, onde há carência de instrumentos de apoio à comercialização e, particularmente, de suporte a uma estratégia de segurança alimentar por dentro da política de fomento agrícola. "A questão é que já há algum tempo a Política de Preços Mínimos não conseguia atingir seu objetivo de estabilização de preços e garantia de renda aos produtores", diz.

Outros instrumentos de apoio à comercialização foram criados pelo governo, com orientação mais de mercado, como o contrato de opção - modalidade na qual o governo federal oferece, normalmente no período de entressafra, um preço futuro de compra para produto agrícola, com valor sempre superior ao preço mínimo. "Isso diminuiu a volatilidade, mas a queixa é que somente os maiores produtores e mais integrados podem fazer isso. De qualquer maneira, esse instrumento desonerou o governo de carregar estoques. Esses mecanismos estão valendo, mas estão defasados perante a exigência trazida pela crise global", conclui Junia.