CARTA DE CONJUNTURA Nº 32
Por Fernando José da S. P. Ribeiro
A história econômica brasileira é marcada por um comportamento cíclico do saldo em transações correntes (TC), com períodos de expressivo crescimento do déficit sendo seguidos por reversões que costumam levar o saldo para terreno positivo. Os últimos anos testemunharam a ocorrência de mais um desses ciclos. Esse fenômeno evidencia que o país não tem sido capaz de sustentar um ritmo de crescimento econômico mais intenso sem que isso gere um déficit externo crescente que, mais cedo ou mais tarde, torne necessário realizar ajustes das transações correntes de forma a reduzir o déficit e trazê-lo de volta a patamares “normais“.
Em termos macroeconômicos, deficit em transações correntes equivale a um excesso de investimento sobre poupança doméstica, ou a um crescimento mais rápido da demanda que da oferta doméstica de bens e serviços. No caso brasileiro, períodos de aceleração do investimento confrontam-se com uma taxa de poupança cronicamente baixa − nos últimos 70 anos, ela ficou quase sempre abaixo de 20% do PIB – exigindo volumes elevados de financiamento externo e, em consequência, a acumulação de um crescente passivo externo. Essa é a essência do problema da vulnerabilidade externa, problema crônico na história do país e que permanece sendo um limitador importante do crescimento econômico brasileiro no longo prazo.
Uma Nota Técnica da Carta de Conjuntura n. 32 resume os resultados de dois estudos mais extensos publicados pelo Ipea, que abordam a questão da vulnerabilidade a partir de duas vertentes de análise. O primeiro estudo baseia-se na análise de um amplo conjunto de indicadores que ajudam a identificar em que medida o país corre risco de enfrentar dificuldades de financiamento do balanço de pagamentos, redundando na necessidade de reversão do déficit em transações correntes ou, em uma situação mais extrema, em uma crise cambial.
O segundo estudo enfatiza o comportamento dinâmico das contas externas, focando na avaliação de possíveis trajetórias futuras do saldo em transações correntes e do passivo externo líquido. A metodologia consiste em projetar os valores futuros dessas duas variáveis a partir de hipóteses acerca da evolução de variáveis como as taxas de crescimento anuais das exportações e importações de bens e serviços, das taxas de remuneração dos ativos e passivos externos e da taxa de crescimento real do PIB. Tal análise permite identificar quais são as combinações plausíveis dessas variáveis que garantiriam a solvência externa do país no longo prazo.
Sinteticamente, os indicadores mostram que o país encontra-se, hoje, em uma situação razoavelmente confortável com relação à vulnerabilidade externa, especialmente em virtude da acumulação de um grande volume de reservas internacionais e de um perfil mais favorável do financiamento externo, que reduz os riscos associados a eventuais problemas de liquidez externa. Mas o comportamento não tão favorável dos fluxos do balanço de pagamentos evidencia que o país ainda tem dificuldade para sustentar períodos prolongados de crescimento da economia em função do desequilíbrio das contas externas, especialmente em função do baixo dinamismo das exportações de bens manufaturados. As simulações de trajetórias possíveis do saldo em transações correntes e do passivo externo líquido nos próximos 15 anos evidenciam que, sob hipóteses que basicamente replicam o comportamento dos diversos componentes das contas externas das últimas duas décadas, o país deverá enfrentar no futuro o mesmo problema que marcou seu passado: um novo ciclo de elevação do deficit em transações correntes e do passivo externo líquido que, provavelmente, redundará na necessidade de um novo ajuste, com as conhecidas consequências negativas sobre a economia − recessão, desvalorização cambial, aceleração da inflação etc.
Portanto, ainda que o país viva uma situação de baixa vulnerabilidade externa no curto prazo, o objetivo mais importante ainda está longe de ser alcançado: reduzir a vulnerabilidade externa de maneira mais perene e estrutural e compatibilizar crescimento econômico sustentado com equilíbrio das contas externas. O problema fundamental reside no desempenho das exportações de bens, especialmente os manufaturados. Enfatiza-se, assim, a necessidade de desenvolver esforços em duas direções, com o intuito de viabilizar um crescimento mais acelerado das exportações: (i) elevação de investimentos em bens comercializáveis, o que implica também esforços de aumento da poupança doméstica para financiar esse investimento; e (ii) medidas de cunho macro e microeconômico visando ganhos de produtividade e competitividade que permitam ao país ganhar espaço nos mercados internacionais de bens industriais. Somente assim seria possível suavizar os ciclos de expansão e retração do saldo em transações correntes e tornar sua trajetória (e, consequentemente, também a do passivo externo líquido) mais equilibrada e compatível com a sustentação de uma taxa de crescimento razoável do PIB no médio e no longo prazo.