Artigo
Experiências internacionais de precificação e acesso a medicamentos: Acordos do Reino Unido para medicamentos de marcas
Artigo discute esforço do país para diminuir os gastos com medicamentos, especialmente os de marca e sob patente
First published in 10/25/2023 - Last updated in 04/29/2024 às 5:51 pm
Priscila Koeller
O gasto com medicamentos é um dos grandes e mais antigos problemas dos sistemas de saúde no mundo, tanto públicos como privados. Nos últimos anos, vários países têm observado o crescimento desses gastos, especialmente com medicamentos de marca ou sob patente (branded medicines)[1], e têm discutido alternativas que permitam, se não reduzir, pelo menos manter os gastos ou ter alguma previsibilidade sobre eles. O caso do Reino Unido é especialmente interessante. Desde a década de 1950, o governo britânico tem estabelecido acordos quinquenais com a indústria farmacêutica para a precificação de medicamentos de marca, visando tais objetivos.
O National Health System (NHS) é o sistema de saúde público britânico, que atende a maior parte da população da Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e do País de Gales.[2] Nesse sistema, o maior custo, depois dos custos com pessoal, é o com medicamentos, sobretudo os de marca — embora em termos de volume, os medicamentos genéricos sejam mais importantes. Segundo Naci e Forrest (2023), esses custos têm sido crescentes: entre 2012 e 2022, o gasto do Reino Unido com produtos farmacêuticos teve um crescimento médio anual de aproximadamente 5,5%, enquanto o total do orçamento do NHS cresceu aproximadamente 1,4% ao ano no mesmo período.
O governo britânico vem negociando acordos com a indústria para tentar contornar essa questão. Tais acordos são voluntários e estabelecidos para todos os países do Reino Unido, tendo como representante do governo o Department of Health and Social Care (DHSC) e, do lado das empresas, a Association of the British Pharmaceutical Industry (ABPI), que reúne companhias farmacêuticas (incluindo aquelas fabricantes de medicamentos biológicos) cuja produção é baseada em pesquisa e desenvolvimento (P&D) (R&D bases industries). Os produtos dessas empresas são os medicamentos de marcas (branded medicines), ainda que vários deles não estejam mais protegidos por patentes (off-patent).
Inicialmente, de forma sintética, os acordos estabeleciam percentuais de redução dos preços dos medicamentos no mercado com base nos preços praticados até o final do ano anterior ao acordo, podendo haver alguma flexibilidade dependendo do faturamento da empresa, por exemplo. Os acordos também estabeleciam um retorno máximo sobre o capital ou o volume de vendas.
Em 2005, o Office of Fair Trading (OFT), órgão do governo britânico, realizou extensa avaliação e concluiu que era necessário rever os mecanismos estabelecidos pelos acordos voluntários. A questão central que se colocava era se os acordos eram eficientes não apenas em termos da redução de custos para o sistema britânico, mas também para os pacientes, isto é, se os medicamentos prescritos eram custo-efetivos (OFT, 2007). A avaliação de custo-efetividade de um medicamento compara os custos e benefícios de diferentes intervenções de saúde de forma a auxiliar nas decisões sobre a alocação de recursos. Em geral, instituições como o National Institute for Health and Care Excellence (NICE) desenvolvem modelos para realizar essa avaliação de custo-efetividade, estimando os custos e benefícios incrementais associados a determinado medicamento em comparação com os de outro que seja utilizado em tratamento similar (OFT, 2007, p.66).
O OFT também questionou em que medida os acordos estavam atendendo aos interesses da indústria farmacêutica mais do que aos dos pacientes (Collier, 2007). A discussão centrava-se não apenas sobre qual deveria ser o objetivo da política do ponto de vista dos pacientes, mas também no fato de haver diversos objetivos definidos pela política farmacêutica adotada — por exemplo, muitos dos acordos firmados até então pretendiam garantir o acesso a medicamentos e promover a indústria farmacêutica e a inovação nessa indústria (Collier, 2007; Naci, Forrest, 2023).
Como resultado dessa avaliação, foram feitas várias sugestões de aperfeiçoamento, com destaque para a necessidade de realinhar os objetivos dos acordos, de forma que eles atendam aos interesses dos pacientes, e melhorar os gastos do sistema de saúde, dando acesso a medicamentos custo-efetivos. Além disso, sugeriu-se explicitamente abolir o controle de preços e lucros, e adotar uma abordagem baseada em valor (value-based approach), isto é, que relacionaria os preços dos produtos ao seu valor clínico em relação aos tratamentos existentes (OFT, 2007).
Ainda que não totalmente, várias sugestões foram introduzidas gradualmente nos acordos seguintes. Atualmente, está em vigor o “Voluntary Scheme for Branded Medicines Pricing and Access (VPAS)” 2019, com duração prevista até o final de 2023. Os objetivos globais estabelecidos dizem respeito (i) aos pacientes, visando melhorar o acesso a medicamentos custo-efetivos; (ii) à acessibilidade, mantendo os dispêndios globais do NHS, a previsibilidade, e o desenvolvimento e fornecimento de medicamentos pela indústria; e (iii) à economia e à inovação, apoiando a indústria, visando resultados para a economia do Reino Unido, e a inovação (THE, 2018, p.6-7).
Para cumprir esses objetivos, o acordo se divide em duas partes, as quais estabelecem:
- Medidas para a Inglaterra (a não ser que explicitamente relacionada a outro país) apoiar a inovação e garantir melhores resultados para os pacientes por meio do acesso aos medicamentos mais avançados e custo-efetivos;
- Mecanismo de acessibilidade para o Reino Unido, segundo o qual os membros do acordo fazem uma “contribuição financeira” ao Department of Health and Social Care (DHSC) pelas vendas de medicamentos de marca ao NHS acima da taxa de crescimento acordada (nesse acordo, há o estabelecimento de limite para o crescimento dos gastos com medicamentos).
Em linhas gerais, o VPAS 2019 segue na direção de avançar no value-based approach para os medicamentos e traz como diferença importante em relação aos acordos anteriores a participação explícita do NICE (THE, 2018, p.5). A incorporação do NICE como um dos atores está refletida principalmente na primeira parte do acordo. O destaque é o fato de incluir a obrigatoriedade de avaliação pelo NICE de todas as novas substâncias ativas ou de novas indicações para medicamentos já existentes. No entanto, foram mantidos os Patient Access Schemes (PAS) — mecanismo que permite que o fabricante ofereça ao NHS descontos como forma de melhorar a relação custo-benefício de medicamentos que não são, em primeira instância, considerados custo-efetivos pelo NICE.[3]
No que se refere à segunda parte, o acordo tem como principal instrumento o “Payment Scheme”, no qual o limite de crescimento para os gastos com medicamentos de marca é de 2% (nominal) ao ano. O “Payment Scheme” estabelece que será pago ao DHSC, por cada membro signatário, o valor das vendas dos produtos elegíveis no acordo multiplicado pela percentagem de pagamento para cada ano do acordo. Essa percentagem de pagamento é, em linhas gerais, definida comparando-se os valores estimados de vendas por ano em relação ao valor real de vendas, descontado o crescimento permitido anualmente.[4]
Com o fim do acordo previsto para 2023, está em andamento uma nova negociação que implicará alterações nessa abordagem, que foi fortemente comprometida pela Covid-19 (BALOGUN, ROUGH, SUTHERLAND, 2023). Os gastos com medicamentos em 2020 ficaram aquém do previsto porque vários tratamentos foram suspensos ou postergados em razão da pandemia. Nos anos seguintes, 2021 e 2022, o crescimento dos gastos ficou muito acima dos 2%. Assim, as percentagens de pagamento para 2022 e 2023 ficaram: 15% e 26,5%, respectivamente (Barlow et al., 2023, p.8), superiores às médias históricas (6,88%, considerando o acordo de 2014-2018 e os três primeiros anos do VPAS 2019-2023)[5].
Segundo a ABPI[6], o atual acordo estaria minando a competitividade das indústrias farmacêuticas no Reino Unido e inviabilizando os investimentos em P&D e inovação. A associação diz também que os percentuais do “Payment Scheme” estabelecidos para 2022 e 2023 estariam muito acima de outros países semelhantes ao Reino Unido, citando Alemanha, Espanha e Irlanda.
A proposta da ABPI para o novo acordo — Voluntary Scheme addressing Pricing, Access, and Growth (VPAG 2024) — pretende tratar essa questão incluindo como linhas gerais do acordo: (i) abordagem sustentável ao fornecimento de medicamentos de marca, com pagamentos pela indústria compatíveis com os de países comparáveis para desbloquear o investimento e o crescimento; (ii) “maximização do potencial” da indústria de ciências biológicas do Reino Unido como motor de crescimento, inclusive como destino para P&D, incluindo pesquisas clínicas; (iii) rápido acesso dos pacientes e a adoção de novos medicamentos em parceria com o sistema regulatório [Medicines and Healthcare products Regulatory Agency (MHRA) e NICE]; (iv) melhora dos resultados de saúde e da produtividade por meio da adoção de inovações nos cuidados de saúde (THE, 2023, p. 7).
Para cada uma dessas linhas, a APBI faz uma proposta para o acordo: (i) fornecimento de medicamentos de marca — propõe um percentual fixo de pagamento (6,88%) sobre as vendas de medicamentos de marcas ao Reino Unido para todos os anos do acordo (média dos pagamentos no período 2014-21); (ii) maximização do potencial da indústria — estabelecimento de fundo de investimento (Investment Facility) pela indústria financiado por um pagamento adicional de 1,5%, além da taxa de pagamento acordada (proposta de 6,88%) (Barlow et al., 2023, p.35); (iii) acesso e adoção de medicamentos — aperfeiçoamento dos processos de licenciamento de novos medicamentos pelo MRHA e revisão dos acordos para acesso a medicamentos específicos estabelecidos pelo VPAS 2019, buscando maior flexibilidade, além da revisão dos métodos e processos do NICE, que permanecem sem implementação; (iv) resultados de saúde e produtividade — estabelecimento de parcerias, financiadas pelo Investment Facility, com a finalidade de superar barreiras no sistema local que impedem a adoção de novos medicamentos de forma rápida.
Essa proposta da associação foi apresentada ao governo britânico, que abriu negociação para o novo acordo[7] que substituirá o VPAS 2019 em maio de 2023. No entanto, segundo Balogun, Rough, Sutherland (2023, p. 9), o governo teria afirmado que as propostas da ABPI são inacessíveis e alertou que elas aumentariam o custo dos medicamentos e reduziriam o acesso a novos medicamentos — a negociação continua sem outros elementos divulgados até o momento.
Em síntese, esse modelo, único, pode servir de inspiração para o aprimoramento da política farmacêutica no Brasil. Dois aspectos merecem atenção: a utilização do orçamento público para a compra de medicamentos como elemento central do acordo para o estabelecimento das regras de preços; e o uso da avaliação de tecnologias em saúde (ATS) como parâmetro para a precificação.
Em relação à ATS, apesar dos avanços estabelecidos no VPAS 2019 e da existência do NICE (uma das mais conceituadas instituições com essa finalidade no mundo), ainda são necessários aperfeiçoamentos para que, de fato, o orçamento público disponibilizado para aquisição de medicamentos seja utilizado da forma mais eficiente possível para os pacientes. Vicente et al. (2022, p.893) afirmam que, no caso do Brasil, a ATS ainda precisa avançar significativamente, uma vez que sua institucionalidade ainda é frágil e incompleta.
Outro aspecto que merece atenção é o fato de a política farmacêutica ter múltiplos objetivos, exigindo esforço de coordenação, pois manter/ampliar o acesso a medicamentos custo-efetivos e estimular o desenvolvimento e a inovação pela indústria parecem apontar para sentidos opostos, como já sinalizava a avaliação do OFT. Os acordos voluntários, especialmente aqueles estabelecidos após essa avaliação, tiveram como um dos objetivos tentar conciliar esses interesses diversos. O desafio na negociação do novo acordo é justamente seguir compondo esses objetivos, que podem se tornar conflitante. Para o Brasil, será interessante acompanhar o resultado dessas negociações.
[1] Para detalhes sobre o crescimento dos gastos com medicamentos, ver OECD (2021, p. 236-7,), Health at a Glance 2021: OECD Indicators, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/ae3016b9-en.
[2] No Reino Unido, cerca de 11% da população tem acesso ao sistema de saúde privado (World Health Organization. Regional Office for Europe, European Observatory on Health Systems and Policies, Foubister, Thomas, Thomson, Sarah, Mossialos, Elias. et al. (2006). Private medical insurance in the United Kingdom. World Health Organization. Regional Office for Europe; e, https://www.laingbuisson.com/shop/health-cover-uk-market-report-18ed/ ).
[3] O NICE já prevê outras formas de incorporação de medicamentos através, por exemplo, do Cancer Drugs Fund (CDF), do Highly Specialised Technology (HSTs) e o Budget Impact Test (BIT). Para um detalhamento sobre esses programas ver Castle, Kelly, Gathani (2022) e Naci, Forrest (2023).
[4] Para detalhes sobre a fórmula, ver THE (2018, p. 31-2) e os anexos do acordo.
[5] https://www.abpi.org.uk/value-and-access/uk-medicine-pricing/voluntary-scheme-on-branded-medicines/the-challenge-the-current-vpas-is-undermining-uk-life-science-competitiveness/. Acesso em 17 agosto 2023.
[6]https://www.abpi.org.uk/value-and-access/uk-medicine-pricing/voluntary-scheme-on-branded-medicines/the-challenge-the-current-vpas-is-undermining-uk-life-science-competitiveness/. Acesso em 17 setembro 2023.
[7] https://www.gov.uk/government/news/negotiations-begin-for-a-new-medicine-pricing-scheme. Acesso em 17 setembro 2023.
Referências
BARLOW, J. et al. Sectoral Systems of Innovation and the UK’s Competitiveness. 2023.
CASTLE, G., KELLY, B., GATHANI, R. Pricing & Reimbursement Laws and Regulations 2022. United Kingdom. 2022.
COLLIER J. The pharmaceutical price regulation scheme. The BMJ. 2007 Mar 3; 334(7591):435-6.
BALOGUN, B., ROUGH E., SUTHERLAND, N. Debate on the voluntary scheme for branded medicines and the Life Sciences Vision. Commons Library Debate Pack, Number CDP 2023/0097, House of Commons Library, 2 May. 2023.
FIRST Amendment to the 2019 Voluntary Scheme for Branded Medicines Pricing and Access. Prepared by the Department of Health & Social Care and the Association of the British Pharmaceutical Industry. 19 January 2022.
HOUSE OF PARLIAMENT (2010): Drug Pricing. Post Note Number 364. October 2010.
NACI, H.; FORREST, R. Pharmaceutical Policy: Balancing Innovation, Access and Affordability. Pharmaceutical Policy in the UK: The London School of Economics and Political Science and The Health Foundation. Mar. 2023.
OFT. THE Pharmaceutical Price Regulation Scheme - An OFT market study. The Office of Fair Trading. Crown. Feb. 2007.
THE 2019 Voluntary Scheme for Branded Medicines Pricing and Access - Chapters and Glossary. Prepared by the Department of Health & Social Care and the Association of the British Pharmaceutical Industry. Dec. 2018.
THE 2019 Voluntary Scheme for Branded Medicines Pricing and Access – Annexes. Prepared by Community Care/Medicines and Pharmacy/Medicines Pricing and Supply/Cost Centre No. 17080. December 2018, Amended January 2022.
THE Association of the British Pharmaceutical Industry. At the Crossroads: How a new UK medicines deal can deliver for patients, the NHS and the economy. https://www.abpi.org.uk/publications/at-the-crossroads/ (2023).
VICENTE, G. et al.. Pharmaceutical policies for gaining access to high-priced medicines: a comparative analysis between England and Brazil. Saúde em Debate, 46, 886-905. 2022.
* Este artigo faz parte de uma série sobre precificação e acessibilidade de medicamentos a partir da visão e da atuação de instituições internacionais.
** Este trabalho foi financiado pelo Ministério da Saúde por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) n. 06, de 2022.
*** Uma versão estendida deste artigo foi publicado como Nota Técnica. Para acessá-la, clique aqui.