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Desorganização da fala ajuda a diagnosticar transtornos psiquiátricos
Análises computacionais de aspectos da linguagem resultaram em um método rápido que antecipa em meses diagnósticos de esquizofrenia e transtorno bipolar
Publicado em 19/03/2020 - Última modificação em 23/12/2020 às 13h44
Pesquisadores do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) desenvolveram um método para determinar a relação existente entre a fala desorganizada e a ocorrência de transtornos psiquiátricos que pode ser usado para antecipar o diagnóstico para essas doenças.
O método resultou de um conjunto de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas no Instituto há cerca de dez anos pela psiquiatra Natalia Mota, sob orientação do neurocientista Sidarta Ribeiro, vice-presidente do ICe, e do físico Mauro Copelli, do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A partir da observação de como um paciente organiza seu discurso e realiza conexões entre palavras, os pesquisadores criaram uma metodologia para o diagnóstico de transtornos psiquiátricos com pelo menos seis meses de antecedência. Em especial nos casos de esquizofrenia, o estudo demonstra ser possível anteceder, com objetividade, diagnósticos que podem ser confirmados com o acompanhamento médico, ajudando a prever crises psicóticas e a diminuir futuros danos cognitivos aos pacientes.
“A organização mental é traduzida na fala, e um paciente com esquizofrenia tem uma série de sintomas que denotam uma desorganização mental, vista como distúrbios do pensamento, demonstrados a partir de dificuldades na expressão verbal, expressa como uma fala fragmentada. Nesses casos, há claramente uma pobreza informacional e uma fala descarrilhada”, explica a pesquisadora.
De acordo com Natalia, a previsão da ocorrência de crises psicóticas é feita a partir de aspectos da linguagem analisados por computador. Para realizar a análise, ela passou a gravar e transcrever as palavras dos pacientes ordenando-as em um grafo de discurso por meio um software desenvolvido no ICe, o SpeechGraph, que mostra as características estruturais da fala e como as palavras são organizadas espontaneamente no discurso, por meio dos grafos – ramo da matemática que estuda as relações entre os objetos de um determinado conjunto.
Para definir diferenças entre falas patológicas e não patológicas, ela realizou uma análise não semântica, com número fixo de palavras. Em 2017, os pesquisadores ouviram 214 voluntários, dos quais 149 indivíduos típicos (sem sintomas) e 65 pacientes com sintomas psicóticos.
Tecnologia e representação da fala
O SpeechGraph usa texto como entrada e retorna características de grafo como saída. O software é disponibilizado sem custos pelo Instituto, e pode ser executado em diferentes plataformas, como Linux, Windows e OSX.
No ICe, a metodologia de análise computacional da fala aplicada à psiquiatria iniciou-se em 2007, numa linha de pesquisa conhecida como psiquiatria computacional. Assim, relatos orais de sonhos e imagens foram gravados e analisados pelo software, permitindo aos pesquisadores verificar o nível de conexão na trajetória das palavras dos pacientes, que foram acompanhados durante seis meses. A análise gerou um índice de desorganização, que forneceu subsídios para os diagnósticos.
A pesquisa mostra que, no caso de pacientes com esquizofrenia ou transtorno bipolar, o discurso vai se deteriorando durante o aparecimento de sintomas psicóticos, independentemente do nível de escolaridade. Além de auxiliar na predição do diagnóstico pelo psiquiatra, o método ajuda o paciente a antecipar o início do tratamento, antes que as crises se iniciem.
“As falas de crianças com desenvolvimento típico, por exemplo, a medida que elas aprendem a ler, geram grafos bem conectados, algo comum no crescimento. Em situações de desenvolvimento atípico, como na presença de sintomas psicóticos, quando não são encontradas causas biológicas, os pacientes são submetidos às gravações, que posteriormente são transcritas e analisadas pela representação por grafos, evidenciando trajetórias de falas aberrantes. O desenvolvimento do software foi feito depois de termos noção do que queríamos encontrar, que parâmetros de grafo estudar”, conta.
O software recebe o arquivo de texto com a transcrição da fala oral e representa essa fala como um grafo, no qual cada palavra é um nó e setas indicam a sucessão de palavras na fala transcrita. Quando um termo se repete, há um retorno para o mesmo nó, o que tem impacto global na estrutura do grafo. Esses aspectos podem ser medidos e visualizados.
“É possível quantificar essas características em comparação com grafos randômicos, gerados aleatoriamente com as mesmas palavras utilizadas pela fala em análise. Isso permite uma comparação entre a topologia encontrada no grafo da fala analisada e outra encontrada aleatoriamente, mostrando o quanto essa fala tem uma estrutura semelhante ao encontrado ao acaso”, explica, ressaltando que este é um dos exames complementares pioneiros para diagnósticos em psiquiatria, e o primeiro a usar essa metodologia em todo o mundo.
A automatização do processo aconteceu em 2014, quando foram feitas provas de conceito, estabelecendo diferenças entre transtorno bipolar e esquizofrenia. Em 2017 foi possível aplicar a metodologia para pacientes já no primeiro episódio de psicose, ainda antes do diagnóstico formal de esquizofrenia ou transtorno bipolar do humor. “Como são sintomas difíceis de caracterizar, tentamos observar essas mesmas características da fala logo no início dos processos psicóticos, coletando relatos curtos, de 30 segundos, nos quais os sintomas são evidentes”.
Um dos sintomas da esquizofrenia é o “embaralhamento” de palavras, ou seja, a fala é aleatória, randômica, cuja ordem é analisada pelo software. “Em 64% dos casos, já nos primeiros sinais da patologia, os sujeitos com esquizofrenia apresentam essa característica na fala, algo gritante nos indivíduos crônicos. A diferença que conseguimos é poder ter essa informação ainda no início da doença”, diz.
Em todos os casos, o diagnóstico padrão ouro dos psiquiatras, que envolve escuta e análise dos pacientes, é usado para informar o classificador. Os grafos são alimentados com essas informações, suas medidas são consideradas e alimentam os algoritmos com diferentes estratégias matemáticas, criando mapas e gráficos para medir a acurácia dos resultados.
Diagnóstico antecipado
Aliando ciência básica e tecnologia no suporte à avaliação clínica, o método permite traduzir matematicamente a descrição psicopatológica das desordens do pensamento típicas na esquizofrenia. “Em psiquiatria, área em que ainda não existem biomarcadores ou exames complementares, esse método é um avanço para deixar mais claros e precisos os diagnósticos”, diz Natalia, fazendo uma analogia com exames tomográficos, que revelam imagens não visíveis a olho nu, mas que servem para corroborar diagnósticos.
Segundo ela, a confiabilidade do teste chega a 70% nos pacientes crônicos de transtorno bipolar do humor, atingindo 90% no caso de pacientes com esquizofrenia, o que permite estabelecer a especificidade da sintomatologia.
“Pacientes com transtorno bipolar do humor não apresentam perdas cognitivas severas, mas na esquizofrenia isso fica mais evidente. Nesses casos, o diagnóstico precoce pode ser viabilizado também para a orientação da família do doente”. Todos os testes foram feitos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), no hospital universitário Onofre Lopes, da UFRN, e em Centros de Atendimento Psicossocial (Caps).
Natalia diz que planeja montar um serviço de atendimento à população no ICe, em convênio com o SUS, pois sua implantação seria de baixo custo. Mas reconhece que, para isso, seria preciso antes acompanhar um maior número de pacientes, em diferentes regiões do país. “Precisamos basicamente de um gravador e um computador. A análise de grafos é rápida, o que possibilita seu uso como exame complementar à avaliação psiquiátrica, ajudando a prevenir, inclusive, internações desnecessárias, e a diminuir os custos do sistema”, observa.
O estudo conta com colaborações de pesquisadores do Canadá, Inglaterra e Estados Unidos, a fim de replicar os achados em falantes nativos de outros idiomas. Para Natalia, a maior importância dos testes no exterior é a generalização dos resultados e validação dos métodos em outros idiomas e culturas. Segundo ela, após o acompanhamento de 56 pacientes diagnosticados com psicose na Inglaterra, foi confirmado que as descobertas podem ser generalizadas, ou seja, seus resultados são confiáveis independentemente da língua falada pelos pacientes.
Em uma fase inicial, a pesquisa foi descrita em um artigo na revista Plos One, em 2012. Seguiu com a automatização do processo publicado em 2014 na revista Scientific Reports, e em 2017 foram publicados achados em pacientes ainda em primeiro episódio na revista NPJ Schizophrenia, ambas do grupo Nature. No final de 2018, o estudo concluído foi publicado novamente na revista NPJ Schizophrenia.
Também no ano passado, a pesquisa venceu o prêmio Abril & DASA de Inovação Médica, na categoria Inovação em Medicina Diagnóstica. Antes, em 2017, conquistou a 16ª edição do Prêmio de Incentivo em Ciência, Tecnologia e Inovação do Sistema Único de Saúde (SUS), na categoria “Trabalho Científico Publicado”, quando foi reconhecida pelo SUS como de baixo custo e alto potencial para adoção na rede pública de saúde.