Artigo
Inovações tecnológicas permitem maior participação política?
Um estudo de caso de plataformas digitais inovadoras no Brasil
Publicado em 23/06/2021 - Última modificação em 15/09/2021 às 18h30
Texto inspirado em Technology in Society.
Há cerca de 20 anos, o Prof. Benjamin Barber da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, havia posto a seguinte questão: “as tecnologias modernas corromperam ou melhoraram nossa forma de fazer política?”.
As tecnologias de informação e comunicação (TICs), por exemplo, permitiram mudanças sociais profundas e influenciaram a configuração das chamadas “sociedades do conhecimento” e “economias baseadas no conhecimento”, facilitando a comunicação, o compartilhamento de dados e o surgimento das redes virtuais. Porém, essas tecnologias não são neutras.
Por um lado, as TICs permitiram uma difusão acelerada e deliberada de informações falsas (fake news) em dimensões assustadoras, por meio de redes sociais e também de contas autônomas programadas (conhecidas por bots) para espalhar mensagens, manipulando a opinião pública.
Tropas cibernéticas passaram a utilizar inteligência artificial durante campanhas eleitorais, com o objetivo de moldar o discurso público, muitas vezes suscitando sentimento de ódio.
Além disso, algoritmos utilizados em redes sociais, como o Facebook, podem causar o chamado “efeito ressonância”, isto é, sugestões personalizadas para cada indivíduo levam a “bolhas”, podendo ampliar a polarização e brutalização do comportamento social em círculos virtuais e físicos.
Os efeitos negativos das tecnologias têm ameaçado as democracias, como aponta a MIT Technology Review. No entanto, olhando para os aspectos positivos, Archon Fung, da Universidade de Harvard, propõe que as TICs interferem na dinâmica democrática de diversas maneiras, por exemplo, ao:
- acelerar o fluxo das comunicações, possibilitando a comunicação de muitos para muitos e diminuindo o custo de aquisição de informações, ou seja, tornando a esfera pública mais acessível e menos concentrada (empoderamento da esfera pública);
- reduzir os custos de organização, ou seja, possibilitar que indivíduos localizados em diferentes regiões se auto-organizem, reúnam e cumpram de forma eficaz os objetivos de interesse comum (transformação da governança democrática);
- criar conexões diretas entre cidadãos, por um lado, e políticos e formuladores de políticas, por outro (democracia digital direta e participativa);
- reunir grande quantidade de dados e informações sobre assuntos de interesse público, permitindo sua divulgação a outros atores da sociedade civil (truth-based advocacy);
- adensar a conexão entre as organizações políticas e seus membros (mobilização constituinte);
- permitir que os usuários profissionais atuem como intermediários entre os cidadãos e o governo, atraindo os primeiros para melhor identificar os problemas públicos e trazendo-os à atenção do governo (crowd-sourced social monitoring).
A e-democracia – também conhecida por internet democracy ou democracia digital – pressupõe a utilização das TICs para aprimorar a participação política, principalmente ao possibilitar um envolvimento crescente da população em conjunto com uma ampla “declaração de vontades”.
Em outros termos, tecnologias digitais como as redes sociais permitem que cada vez mais indivíduos possam expressar suas preferências sobre um amplo número de assuntos, fenômeno difícil de ser imaginado na realidade puramente analógica. No entanto, redes sociais não tiveram em seu design a preocupação de estruturar dados de modo a serem inputs para o processo democrático.
Isso não impediu que diversas iniciativas institucionais e não-institucionais se inspirassem nas redes sociais pioneiras (e.g. Orkut, Facebook, MySpace) para propor espaços virtuais de participação popular. Tais espaços podem ser nomeados de “plataformas digitais” e vêm recebendo crescente atenção da comunidade de pesquisa.
Brasil: uma das maiores democracias e um dos maiores usuários de redes sociais do mundo
Embora o Brasil tenha uma população votante crescente, chegando a mais de 152 milhões de pessoas, a participação eleitoral diminuiu em comparação com as eleições anteriores (Figura 1).
A despeito dessa queda, há avanços institucionais no país desde a redemocratização que permitem inclusão política e representação que vão além das eleições, como o orçamento participativo, as conferências de políticas públicas e os conselhos gestores de políticas públicas, conforme demonstrado em estudo publicado pela Brazilian Political Science Review.
Figura 1 – População em idade eleitoral e participação eleitoral para presidente, Brasil
Fonte: Institute for Democracy and Electoral Assistance (IDEA). Elaboração do autor.
Existem também novas possibilidades de engajamento público no processo democrático graças aos avanços científicos e tecnológicos. Pesquisa publicada na Science & Public Policy, por exemplo, mostra que a sociedade civil brasileira tem se beneficiado do uso de tecnologias baseadas em inteligência artificial para fomentar uma participação política difusa, aprofundando a qualidade da democracia.
Durante as campanhas eleitorais, as tecnologias baseadas em inteligência artificial podem envolver os eleitores e ajudá-los a ter mais informações sobre questões políticas fundamentais. Podem amplificar a voz e garantir que as reivindicações sociais sejam ouvidas por representantes eleitos.
A Operação Serenata de Amor, por exemplo, é uma iniciativa brasileira de um grupo da sociedade civil que desenvolveu algoritmos para auditoria de dados públicos abertos desde a Lei de Acesso à Informação.
O projeto permitiu identificar gastos suspeitos de deputados federais em escalas muito superiores àquelas que seriam reconhecidas manualmente. As suspeitas são reportadas para as agências responsáveis e para a sociedade civil, que dessa forma se aproxima da administração pública.
Já as plataformas digitais institucionais, desenvolvidas ao longo dos últimos anos, possuem distintos graus de sucesso em termos de engajamento e participação.
A Câmara dos Deputados, por exemplo, desenvolveu o e-Democracia, iniciativa importante de aproximação do cidadão com pautas legislativas. Embora haja funcionalidades interessantes no portal, sua interação é muito menos direta do que via redes sociais multipropósitos, como Twitter ou Facebook, nas quais os cidadãos “entram em contato direto” com aqueles representantes atuantes nestas plataformas.
Dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), mostram que os brasileiros estão usando cada vez mais plataformas digitais institucionais: em 2015, 59% dos usuários de Internet (acima de 16 anos) utilizaram (pelo menos uma vez em 12 meses) alguma página e-gov e, em 2019, foram 68%.
No que se refere ao acesso à Internet, cumpre destacar que os brasileiros estão progressivamente mais conectados. Conforme mostram os dados do CETIC, o percentual de indivíduos que acessaram a Internet por meio de computadores, celulares, assistente digital pessoal, console de jogos, TV digital etc. aumentou de 60% em 2015 para 80% em 2019, ou seja, um salto de 115 milhões a 144 milhões de indivíduos no período.
Mesmo com esse aumento, 36 milhões de brasileiros não utilizaram a World Wide Web em 2019. Em relação às redes sociais, no Brasil existem mais de 141 milhões de usuários (aproximadamente 67% da população), o que faz com que o país seja colocado entre os cinco maiores em termos de número de usuários dessas plataformas no mundo (Figura 2).
Figura 2 – Número de usuários de redes sociais, países selecionados, 2020
Fonte: Statista. Elaboração do autor.
Além das plataformas digitais institucionais utilizadas como instrumentos para ampliar a participação política e democrática, existem outras iniciativas não institucionais no país. A seguir, são apresentados dois casos de plataformas que têm alcançado relativa difusão dentro do parlamento.
Duas plataformas não institucionais no Brasil: “Tem Meu Voto!” e “Poder do Voto”
Duas plataformas – “Tem Meu Voto!” e “Poder do Voto” – são exemplos recentes de iniciativas domésticas não institucionais criadas para fortalecer a e-democracia no país e ambas foram premiadas por suas capacidades inovadoras. Por exemplo, o “Tem Meu Voto!”, inicialmente conhecido por “Meu Vereador” e posteriormente por “Nosso Mandato”, recebeu um prêmio de melhor startup em 2018.
Segundo o site “Tem Meu Voto!”, o aplicativo “visa aumentar o interesse pela política. Nosso objetivo é o voto consciente”. E o “Poder do Voto” tem como missão “engajar eleitores e seus representantes em um debate construtivo sobre as leis do Congresso Nacional, para acompanhar e disponibilizar em privado a harmonia entre as decisões tomadas pelos políticos e pela população na elaboração e votação das leis do país (…)”.
Em estudo que publicamos na Technology in Society, analisamos as duas plataformas mencionadas, a partir de duas perspectivas: características tecnológicas e geração de novas formas de participação política.
a) Características tecnológicas
“Tem Meu Voto!” e “Poder do Voto” são semelhantes em sua relação com a tecnologia. Ambos oferecem portais web, aplicativos móveis e serviços digitais entregues online. Apesar dessas semelhanças, seu escopo é um pouco diferente: enquanto “Tem Meu Voto!” possui maior capilaridade, uma vez que pode ser utilizado por parlamentares em nível municipal (deputados municipais), estadual (deputados estaduais) ou nacional (deputados e senadores), o “Poder do Voto” é focado apenas no nível nacional.
Isso reflete o mecanismo de coleta de dados das duas plataformas: “Tem Meu Voto!” oferece dados disponibilizados pelos parlamentares aderentes ao aplicativo, e o “Poder do Voto” usa rastreadores que automatizaram a busca daquela informação que está publicamente disponível por força de lei apenas em nível nacional.
Por enquanto, há uma compensação clara entre o alcance dos dados e a confiabilidade nessa questão. Os desenvolvedores do “Tem Meu Voto!” optaram por ter maior alcance, delegando aos parlamentares a responsabilidade de fazer com que a transparência aconteça. O “Poder do Voto” é dedicado apenas a uma esfera, é mais restrito, mas coleta informações confiáveis e sem lacunas.
As duas plataformas têm em comum o fato de dependerem inteiramente de terceiros para o desenvolvimento técnico de suas soluções: são usuários de tecnologia, não desenvolvedores.
Quando a pesquisa de campo foi realizada, identificamos que existiam limitações financeiras para a criação de equipes de TI dedicadas (uma plataforma depende de doações; a outra tem se esforçado para expandir sua base de usuários pagantes). Além da terceirização – mas intimamente ligada a ela – ambas plataformas são construídas na infraestrutura de gigantes da tecnologia. Os serviços de computação em nuvem – infraestrutura, plataforma e software como serviço – são amplamente utilizados.
Os desenvolvedores de ambos aplicativos criaram versões para rodar em sistemas Android e iOS. Ambos estão disponíveis na AppStore e no Google Play. Não apenas o uso desses serviços, mas também o caráter proprietário dos algoritmos e o registro da marca, todos demonstram a busca por modelos fechados e não colaborativos (eles não adotam códigos abertos ou algoritmos abertos).
Embora os desenvolvedores tenham demonstrado o compromisso de não explorar os dados do usuário para fins de terceiros, a manutenção de dados em datacenters internacionais pode colocar os dados de cidadãos brasileiros sob a jurisdição de leis como o Patriot Act dos Estados Unidos. Isso poderia levar à vigilância e ao acesso desses dados pelo governo estadunidense, conforme aponta Vicent Mosco, professor da Queen’s University, em seu livro “Becoming Digital: Toward a Post-Internet Society”.
Outra semelhança está em suas políticas de dados. Ambas as plataformas estão empenhadas em utilizar os dados do usuário apenas quando for uma entrada essencial para fornecer seus serviços digitais. Elas declararam não fornecer os dados do usuário a terceiros.
No entanto, o “Poder do Voto” permite a vinculação a uma conta do Facebook – prática chamada piggybacking – e alertam, nos Termos de Serviço, que ao escolher esse acesso, o usuário pode vir a compartilhar dados também com a plataforma de Zuckerberg. Ambas as plataformas buscaram atualizar seus Termos de Serviço para cumprir a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais do Brasil de 2020.
b) Participação Política
“Tem Meu Voto!” e “Poder do Voto” são iniciativas não institucionais importantes para fortalecer a e-democracia no Brasil, especialmente no que diz respeito a mudanças na cultura política e na participação política. Os desenvolvedores de ambas as plataformas escolheram caminhos diferentes, embora possam ser considerados complementares.
O número de usuários de ambas plataformas ainda está longe do que constituiria uma plataforma digital dominante neste campo: “Tem Meu Voto!” possui pouco mais de 40 mil usuários (sendo que possui 35 usuários parlamentares) e “Poder do Voto” possui aproximadamente 60 mil usuários.
Olhando os aspectos positivos categorizados por Archon Fung em relação às TICs e à transformação política no início desse artigo, em nosso estudo identificamos que o “Tem Meu Voto!” cria conexões diretas entre cidadãos, por um lado, e políticos e formuladores de políticas, por outro, e ajuda a adensar a conexão entre as organizações políticas e seus membros.
Já o “Poder do Voto” ajuda a reunir grande quantidade de dados e informações sobre assuntos de interesse público, permitindo sua divulgação a outros atores da sociedade civil (truth-based advocacy) e que os usuários profissionais atuem como intermediários entre os cidadãos e o governo, atraindo os primeiros para melhor identificar os problemas públicos e trazendo-os à atenção do governo (crowd-sourced social monitoring).
Lições?
“Tem Meu Voto!” e “Poder do Voto” são semelhantes ao se propor fortalecer a e-democracia via soluções tecnológicas usando os serviços de infraestrutura dos Big Five (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft).
Contudo, as duas plataformas têm diferentes propostas de engajamento cívico e gerenciamento de dados: observa-se uma abordagem de maior engajamento da comunidade para a co-construção política em “Tem Meu Voto!”, e uma posição mais ostensiva de fiscalização em “Poder do Voto”.
Essas diferenças refletem suas origens (de dentro da própria classe política e de fora) e as possibilidades derivadas da arquitetura de cada plataforma.
A despeito disso, é importante destacar que a formação de comunidades virtuais baseadas em plataformas digitais tem gerado uma arena alternativa de participação política. Ambas as plataformas buscam soluções para o déficit democrático brasileiro e, de alguma forma, ambas buscam transformar a política do país, criando novos mecanismos não institucionais de participação política e promovendo uma mudança cultural política.
Embora sejam iniciativas de alcance limitado, abrem caminhos que podem ser mais explorados e, eventualmente, absorvidos pelo sistema democrático institucional, de forma a conferir-lhe maior interatividade e dinamismo.
* Victo Silva é bacharel em economia (Unicamp) e em relações internacionais (PUC-SP), mestre em Política Científica e Tecnológica (DPCT/Unicamp) e doutorando em Política Científica e Tecnológica (DPCT/Unicamp; Universiteit Utrecht). Seus temas de pesquisa incluem sistema tecnológico digital, plataformas digitais, modelos de governança de plataformas, políticas nacionais de dados e intersecções entre economia e sociedade digital.