Artigo
Análise da nova “Estratégia Nacional de Inovação”
Inconsistência no diagnóstico, generalismo dos objetivos, fragmentação de metas, desarticulação com a ciência, timidez e incongruências orçamentárias ameaçam eficácia do plano
Publicado em 09/08/2021 - Última modificação em 19/04/2022 às 20h13
O Brasil já teve, nos últimos anos, vários documentos públicos cujo objetivo era delinear uma estratégia nacional para a Ciência, a Tecnologia e a Inovação. Eles foram chamados de Planos, Estratégias ou Políticas, mas todos compartilhavam o mesmo objetivo central: delinear diretrizes de políticas e ações públicas para a Ciência e a Tecnologia nacionais. No dia 23 de julho, a Câmara de Inovação – presidida pela Casa Civil e tendo o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) como secretaria-executiva – publicou (com atraso) a Estratégia Nacional de Inovação, que complementa a Política Nacional de Inovação (PNI) instituída pela Presidência da República em 28 de outubro de 2020.
A PNI estabeleceu os princípios, eixos, objetivos e diretrizes de longo prazo que devem nortear as estratégias, programas e ações do governo federal no incentivo à inovação, à pesquisa e ao desenvolvimento no setor produtivo, e instituiu a Câmara de Inovação que deveria, no prazo de 180 dias, formular e aprovar a Estratégia Nacional de Inovação.
Na primeira parte, o documento recém-publicado reproduz os eixos de atuação da política e estabelece suas iniciativas e, numa segunda parte, descreve e detalha essas iniciativas em planos de ação, sob a responsabilidade de diversos órgãos, que deverão concorrer para a implementação da estratégia de inovação.
O objetivo final de qualquer política ou estratégia pública para inovação deve ser o de ampliar as competências tecnológicas de um país e sua capacidade de produzir novas tecnologias, o que, no longo prazo, contribuirá para aumentar a competitividade e o crescimento econômico. Contudo, esse é um objetivo muito amplo que sofre interferência de vários fatores, que vão muito além das políticas de inovação e de seus instrumentos. O ambiente macroeconômico, regulatório, o cenário internacional, a disponibilidade de infraestrutura e o nível educacional afetam a capacidade de inovação das empresas e, muitas vezes, não estão ao alcance dos instrumentos disponíveis para as políticas de inovação.
Portanto, é necessário que a política tenha metas e objetivos específicos, sobre os quais possa atuar efetivamente. Para construir metas adequadas, contudo, é preciso um bom diagnóstico a respeito de quais fatores impedem ou retardam o desenvolvimento tecnológico de um país ou mesmo de quais áreas são estratégicas para o investimento público.
O recém-lançado plano norte-americano para estimular os empregos[1], por exemplo, tem uma seção inteiramente dedicada às políticas para Pesquisa & Desenvolvimento (P&D). O plano parte do diagnóstico de que, se os EUA querem manter sua liderança na economia global de hoje, serão necessários mais investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D). O documento ressalta que os EUA são uma das poucas grandes economias do mundo nas quais o dispêndio público em P&D caiu como proporção do PIB e aponta, explicitamente, a preocupação com a perda de liderança para a China nessa área. Segundo o documento, a perda de empregos nos EUA em setores de alta tecnologia está relacionada a essa queda no investimento.
No Plano Biden para C&T, para alcançar as metas almejadas, o governo norte-americano prevê um investimento de US$ 325 bilhões em ciência, tecnologia e inovação. Entre os objetivos estão, por exemplo:
- Avançar na liderança dos EUA em tecnologias críticas e atualizar a infraestrutura de pesquisa do país;
- Tornar os Estados Unidos líder em ciência e inovação para o clima;
- Eliminar as desigualdades raciais e de gênero na pesquisa e desenvolvimento e áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharias e Matemática (as STEM);
- Proteger os norte-americanos de futuras pandemias;
- Impulsionar a fabricação de energia limpa por meio de compras federais.
Uma estratégia pressupõe isso: um diagnóstico claro dos problemas enfrentados e poucos objetivos bem definidos a serem alcançados. Nesse sentido, não é possível dizer que o programa lançado pelo governo federal brasileiro constitua, efetivamente, uma estratégia, pelas razões que serão detalhadas a seguir.
Faltam diagnóstico preciso e objetivos claros
Em primeiro lugar, a Estratégia carece de um diagnóstico preciso sobre quais são os gargalos para o aumento da inovação no país. Embora exista um documento produzido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) que baseia a estratégia, esse já parte de uma visão falha dos problemas da inovação, pois se norteia por eixos estabelecidos pela Política Nacional de Inovação, que são bastante genéricos, como se discutirá a seguir.
Esses eixos, e seus órgãos responsáveis, seriam, de acordo com o CGEE: i. ampliação da qualificação profissional por meio da formação tecnológica de recursos humanos (Ministério da Educação - MEC); ii. alinhar e assegurar o fomento à inovação (MCTI); iii. estímulo das bases de conhecimento tecnológico para inovação (MCTI); iv. estímulo ao desenvolvimento de mercados para produtos e serviços inovadores (Ministério da Economia - ME); v. disseminação da cultura de inovação empreendedora (MCTI) e; vi. proteção do conhecimento (ME). O Documento do CGEE, portanto, não faz um diagnóstico, mas seis diagnósticos de cada um dos eixos definidos a priori, sem apresentar fundamentação acerca da sua pertinência.
Por exemplo: a falta de proteção de invenções é de fato um obstáculo à inovação no Brasil? Aparentemente não. O Brasil publicou sua atual lei de propriedade industrial (LPI) em 1996, e em diversos aspectos essa legislação foi ainda mais rigorosa ao beneficiar os depositantes do que o exigido pela Organização Mundial do Comércio, através do Acordo Trips.[2] Ainda que o tempo médio de análise dos depósitos de patentes pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) tenha sido, por bastante tempo, considerado um problema, em grande parte dos casos o depositante possuía proteção ”de facto” mesmo durante a análise do pedido, além de muitas vezes ter se beneficiado por essa demora ao conseguir, na prática, extensão do período de proteção.[3] Assim, não é um problema relevante que “proteção do conhecimento” seja um eixo temático de impacto direto e robusto na capacidade de inovação da economia brasileira.
O eixo “disseminação da cultura de inovação empreendedora”, por sua vez, carece de conteúdo prático. Não é a falta de “cultura” para inovar que limita o avanço tecnológico do país, mas a ausência de incentivos (sobretudo os econômicos que atuam tanto pelo lado da demanda, quanto pelo lado da oferta) para tal. Incentivos são concretos, diferentemente de cultura empreendedora. Outro eixo temático, “alinhar e assegurar o fomento à inovação” é vago e reflete apenas a intenção de continuar o fomento e de dialogar com outros órgãos.
Em segundo lugar, os objetivos da política de inovação são tão vagos quanto os eixos. Estimular a P&D, promover a coordenação, fomentar a transformação do conhecimento em produtos (isso é inovação) caberiam em qualquer contexto. Significa dizer que o objetivo da política de inovação é fomentar a inovação de forma coordenada.
Também surpreende no documento a ausência da ciência enquanto fonte de informação para inovação ou mesmo como consumidora de inovações, num processo de retroalimentação. A Política Nacional de Inovação está restrita “ao incentivo à inovação, à pesquisa e ao desenvolvimento no setor produtivo”. Não há um debate sobre a importância do progresso científico para a inovação. Considera-se a formação de mão-de-obra um aspecto relevante, mas nada se diz em relação à produção científica e à formação de cientistas. Os eixos que falam em fomento e em base de conhecimento mencionam apenas fomento à inovação e base de conhecimento tecnológico. Sem ciência não há inovação genuína e a Resolução do MCTI parece ignorar isso.
Não é por acaso, portanto, que o diagnóstico é genérico e incompleto. Por isso, insuficiente. Ele foi restringido por uma estrutura que não se baseou num debate profundo sobre quais os principais gargalos para a inovação no país[4]. Ao partir de um diagnóstico falho, o documento não tem objetivos claros e, assim, não é possível aferir o que se pretende com tal estratégia.
Metas amplas e inalcançáveis
A falta de objetivos específicos e claros redunda em metas equivocadas ou descoladas das evidências empíricas.
Entre as metas muito amplas e que, portanto, são sujeitas a diversos outros fatores além da política de inovação, estão a ampliação dos investimentos empresariais em inovação e da taxa de inovação na economia brasileira. Pretende-se ampliar os investimentos empresariais em atividades inovativas de 0,6% para 0,8% da receita líquida de vendas em 2024. Em primeiro lugar, o indicador citado no documento está equivocado, não foi de 0,62%, e sim de 1,65%, nas indústrias de transformação e extrativas; de 0,66% nas empresas de eletricidade e gás; e de 5,79% nos serviços selecionados[5]. O valor apresentado no documento, possivelmente, refere-se ao percentual da “receita de vendas investido em atividades internas de P&D” nas indústrias de transformação e extrativas. Em segundo lugar, esse investimento vem caindo nos últimos anos para as indústrias e para os serviços selecionados, fruto entre outras coisas do esvaziamento das políticas de inovação, como já foi alertado[6]. Essa falta de precisão em relação ao indicador estabelecido e as diferenças entre atividades econômicas inviabilizam a meta estabelecida.
O mesmo pode se dizer da taxa de inovação, que é o percentual de empresas inovadoras em relação ao total. Esse número, historicamente, oscila na casa dos 30%, tendo sido no melhor momento da série (2012-2014), de 36%. Logo, é difícil imaginar um crescimento para 50% em pouco mais de 2 anos. Isso tudo baseado em (outra meta) um “aumento do investimento público em CT&I”, cujo indicador utilizado é o “volume de recursos alocado a CT&I na Lei Orçamentária Anual”, para R$ 8 bilhões. No entanto, cabe lembrar que o valor alocado ao MCTI em 2020, somente na função C&T, foi de cerca de R$ 5 bilhões. Por sua vez, se são considerados os recursos alocados na função C&T em 2020 para todo o governo federal, então, o valor foi de R$ 7 bilhões. Além da imprecisão do indicador apresentado, esses valores já foram muito maiores, tendo se mantido em torno do patamar anual de R$ 8 bilhões em 2012, 2013, 2014 e 2015, somente para a função C&T no ministério, chegando a alcançar R$ 12 bilhões em 2013 para a função C&T em todo o governo federal.[7] O suposto crescimento colocado agora como meta é, na verdade, portanto, um retrocesso frente a anos anteriores.
Novamente, ter como foco o aumento do investimento em CT&I sem que, por trás desse número, tenha-se objetivos claros sobre quais gargalos tecnológicos o país ambiciona superar e quais questões busca resolver, é apresentar uma meta sem conteúdo.
Além dessas, outras quatro metas estão relacionadas com aumento da nota do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e ampliação e taxa de matrícula em cursos técnicos e na graduação. Essas não são metas de uma política de inovação, mas de políticas educacionais consistentes. Inserir essas metas como resultados de uma política de inovação é equivalente a exigir que a política educacional tenha impactos sobre os indicadores de emprego e renda. Esse ponto é agravado pelo fato de tal “estratégia” não estar integrada com as políticas educacionais.
Fragmentação e ausência de prioridades
A estratégia atual ainda compartilha de problemas comuns às várias outras já publicadas: a fragmentação e a ausência de prioridades. O documento se desdobra em cinco eixos subdivididos em 45 iniciativas que, por sua vez, são detalhadas em mais de 170 ações. Portanto, difícil falar em prioridades.
No documento oficial, essas ações somam R$ 91 bilhões. Trata-se de cifra muito superior aos valores orçamentários previstos para a C&T pelo governo federal como um todo, como visto anteriormente. Numa análise mais acurada, parece haver erros significativos no documento publicado pelo MCTI.
Entre ações que oscilam ao redor de uma média de cerca de R$ 47 milhões cada, existem duas, no eixo “desenvolvimento dos sistemas educacionais para a inovação”, voltadas à capacitação dos servidores do Ministério da Saúde, que somam R$ 86,5 bilhões. Numa dessas ações são previstos R$ 76,5 bilhões para “Customizar cursos para a realidade do Ministério da Saúde”; na outra, R$ 10 bilhões deverão ser aportados para um curso de doutorado em modelagem computacional na Universidade Federal do Tocantins. Ou seja, na estratégia do governo está previsto um orçamento que representa mais da metade do orçamento do SUS para capacitar os servidores do órgão. Provavelmente, trata-se de um erro que passou despercebido pelos formuladores da política (ou por quem editou o documento). Supondo que sejam os únicos equívocos, a tabela abaixo retrata o orçamento previsto, a partir das ações que já possuem orçamento definido[8], para a Estratégia de Inovação do governo federal (excluídas as duas ações mencionadas).
Pode-se observar que o orçamento da Estratégia de Inovação, que, vale lembrar, não contempla a produção científica, é de cerca de R$4,9 bilhões, para 2 anos, valor bem distante da meta de ampliação do investimento público em CT&I para R$ 8 bilhões. Entre as ações mais significativas, do ponto de vista orçamentário, está a de “implementar ações no âmbito da rede vírus”, no valor de R$ 600 milhões. Outras duas mais relevantes são “consolidar a infraestrutura brasileira de acesso ao espaço”, com R$ 500 milhões, e “fortalecer o papel da Embrapii”, com outros R$ 500 milhões. Além disso, outra ação com volume substantivo de recursos é a de “Elaborar um plano de investimento, de gestão e de comunicação da infraestrutura de CT&I, que estimule parcerias com a iniciativa privada e esteja alinhado às necessidades e vocações locais, bem como as prioridades de política pública nacionais e do setor produtivo”, para a qual está previsto um orçamento de R$ 400 milhões. As demais ações, onde supostamente deverão estar todas as funções precípuas da política de CT&I somam R$ 2,9 bilhões, uma média de cerca de R$ 29 milhões para cada uma.
Em síntese, a análise da Resolução CI n°1/21 publicada pelo MCTI, bem como do documento “Apêndice teórico”[9] publicado pelo CGEE permitem afirmar que a Estratégia Nacional de Inovação neles delineada é imprecisa, genérica e sem prioridades objetivas. Tal é fruto de um diagnóstico equivocado dos reais desafios do sistema brasileiro de inovação, que obviamente estão associados a elementos micro e macroeconômicos específicos. Por esses motivos, julga-se que a atual Estratégia Nacional de Inovação representará, na verdade, um retrocesso das políticas de inovação no Brasil.
Este artigo foi originalmente divulgado online como Nota Técnica em "publicação preliminar".
[1] https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/03/31/fact-sheet-the-american-jobs-plan/
[2] Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio
[3] Essa possibilidade deixa de existir com a revogação do parágrafo único do artigo 40 da LPI, em 2021: https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias/comunicado-sobre-extincao-do-paragrafo-unico-do-art-40-da-lpi
[4] Foge ao escopo deste texto discutir esses gargalos, mas o debate está disponível em várias publicações do Ipea entre as quais De Negri (2018) ou (Zuniga et al. 2016).
[5] https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/ciencia-tecnologia-e-inovacao/9141-pesquisa-de-inovacao.html%E2%80%8B?=&t=resultados
[6] https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35477&Itemid=8
[7] Fonte: Siop – Valores correntes.
[8] Várias das ações previstas no documento ainda estão com o orçamento “a definir”.
[9] A própria denominação “teórica” é estranha ao documento.