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Países se articulam para diminuir dependência das cadeias globais de suprimento de chips

Estados Unidos, China e União Europeia irão investir bilhões nos próximos anos para impulsionar suas indústrias de circuitos integrados; o Brasil ainda patina para se consolidar nesse setor

Rodrigo Andrade

Fabricantes de smartphones, TV, carros, geladeiras e aviões, todas nos últimos três anos foram duramente afetadas pela interrupção das cadeias de produção de semicondutores, essenciais para o processamento e armazenamento de dados em diversos componentes eletrônicos — muitos deles, inclusive, considerados críticos para a competitividade e segurança nacional dos países. Gargalos desencadeados pela pandemia levaram à escassez e à disparada dos preços de circuitos integrados, fazendo com que várias empresas que dependiam desses componentes para fabricar seus produtos desacelerassem ou suspendessem a produção, prejudicando o crescimento econômico.

Desde então, governos de diferentes países passaram a investir em medidas para diminuir sua dependência das cadeias de suprimento externas. Em fevereiro de 2022, a Comissão Europeia anunciou um aporte de US$ 47 bilhões em sua indústria de semicondutores, visando aumentar a participação do bloco na produção global de chips na próxima década. Na mesma linha, em março deste ano, a Coreia do Sul aprovou um projeto de lei (K-Chips Act) para impulsionar sua indústria de circuitos integrados, dando isenções fiscais às empresas para estimular investimentos nesse setor.

Os Estados Unidos foram além. Em agosto de 2022, o presidente Joe Biden sancionou um projeto que irá destinar mais de US$ 200 bilhões nos próximos cinco anos à pesquisa, ao desenvolvimento e à fabricação doméstica de semicondutores. Outros US$ 54,2 bilhões deverão subsidiar a construção, expansão e modernização de parques fabris para a produção de alguns dos chips mais avançados do mundo — desse montante, US$ 39 bilhões serão aplicados em empresas que investirem em projetos de pesquisa, desenvolvimento e produção de semicondutores, ou em materiais e equipamentos usados para fabricar esses componentes.

A legislação, batizada de Chips & Science Act, também concederá créditos fiscais às empresas que investirem em equipamentos de produção de circuitos integrados ou na construção de novas instalações. Os contemplados não poderão fazer novos investimentos na produção de semicondutores de alta tecnologia em países concorrentes — notadamente a China — pelos próximos 10 anos. Se descumprirem a norma, terão de devolver os recursos.

Os semicondutores são considerados a espinha dorsal de várias industrias, como a automotiva, de tecnologia da informação e comunicação. São também críticos para a competitividade e segurança nacional dos países. Não por acaso, desde a Segunda Guerra Mundial, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos financia o desenvolvimento desse setor, por meio de universidades ou contratos com empresas privadas. Isso fez com que aquele país se tornasse um líder global nessa indústria.

Desde os anos 1990, porém, eles perdem espaço na produção de semicondutores. Dados da Associação das Indústrias de Semicondutores dos Estados Unidos (SIA) indicam que a participação do país na fabricação de chips caiu de 37% para 12% nas últimas três décadas, ao passo que nações como China, Coreia do Sul, Japão e Taiwan vêm aumentando sua capacidade por meio da construção de fábricas próprias e incentivos fiscais a empresas estrangeiras que se mudarem para lá. Atualmente, quase 70% da produção mundial de circuitos integrados se concentra nesses quatro países, com destaque para Taiwan, cujas exportações de semicondutores cresceram pelo sétimo ano consecutivo em 2022.

A relevância de Taiwan nesse setor se deve principalmente à Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC). A empresa responde por mais de 50% do mercado global de fundição de wafers — disco ultrafino de silício que dá origem ao semicondutor —, desempenhando um papel crítico na cadeia global desses suprimentos eletrônicos.

A China é outro país importante nesse cenário, aumentando cada vez mais sua participação no faturamento mundial de semicondutores. Em 2020, enquanto a participação dos Estados Unidos foi de 21,5%, a da China foi de 34,6%.

O país investe no desenvolvimento de sua indústria de circuitos integrados desde os anos 1960, mas ainda importa US$ 300 bilhões em chips por ano, segundo estudo do Ipea. Esse esforço recentemente passou a sofrer forte oposição política de vários países, sobretudo dos Estados Unidos. A indústria de semicondutores é atualmente um dos epicentros da guerra comercial entre as duas nações, com o governo estadunidense impondo várias sanções para impedir o desenvolvimento tecnológico de seu principal rival na economia internacional — Washington chegou a revisar três vezes suas regras de controle de exportação para atingir um dos principais conglomerados chineses de tecnologia, a Huawei, o que afetou também fornecedores nacionais e de outros países de microchips e placas de circuitos avançados.

Como resposta, a China passou a se articular para lograr estruturas produtivas mais densas e diversificadas, dando ao país maior autonomia em sua trajetória de desenvolvimento. O gigante asiático aumentou seus gastos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), está construindo novos parques tecnológicos e lançou programas de compras públicas e financiamento voltados para sua indústria doméstica de alta tecnologia. A China também divulgou que nos próximos anos priorizará o que batizou de dual circulation strategy, voltada ao fortalecimento do mercado interno e ampliação dos investimentos nessa área. O país pretende investir ainda US$ 1,4 trilhão nos próximos cinco anos na fabricação de chips, na expectativa de conseguir dominar o setor de semicondutores no mundo.

Ainda é cedo para saber qual será o impacto dessas medidas e se elas darão conta de criar uma base de manufatura competitiva nos países que as lançaram. Seja como for, pelo menos no caso dos Estados Unidos, a legislação parece ir além, uma vez que contém em si um componente estratégico mais amplo e de longo prazo envolvendo todo o ecossistema de produção que depende de semicondutores. Uma das propostas é ampliar os investimentos em P&D por meio de agências de fomento à ciência, de modo a acelerar o desenvolvimento das chamadas tecnologias transversais, que têm potencial de atravessar e transformar diferentes setores produtivos, como inteligência artificial (IA), computação quântica, energia, ciência de materiais, entre outras. Parte dos recursos também será destinada à formação de recursos humanos em ciência, tecnologia, engenharia e matemática, visando aprimorar a força de trabalho doméstica para que ela possa apoiar a fabricação de novos chips no futuro.

O Brasil ainda enfrenta dificuldades para se consolidar nesse setor. É bem verdade que o país possui um grande mercado consumidor de semicondutores, mas ainda depende muito da importação desses componentes para atender sua demanda interna. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), o déficit comercial do setor de componentes eletrônicos foi de US$ 38,6 bilhões em 2022. O consumo de semicondutores no Brasil em 2021 foi da ordem de US$ 11 bilhões, mas apenas 8% dessa demanda foi atendida por fabricantes nacionais.

O país chegou a investir em políticas de incentivo às empresas locais de semicondutores no passado. Nos anos 1970, construiu uma política de incentivo para a indústria eletrônica e de semicondutores, implementada nos anos 1980 e abandonada na década seguinte. Em 2000, a indústria de semicondutores entrou na pauta governamental novamente. A política implementada nesse período foi motivada pelo diagnóstico de que a indústria de semicondutores era o elo ausente no complexo eletrônico, com impacto na competitividade da indústria brasileira como um todo.

Nos anos 2000, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (Padis), o governo zerou a alíquota do imposto de importação visando diminuir os custos para aquisição de insumos, máquinas e equipamentos usados na produção de circuitos integrados — o programa se encerraria em 2022, mas foi prorrogado por mais cinco anos por meio da Lei nº 14.302/2022.

O país atualmente aguarda a publicação da Medida Provisória que implementará o Plano Brasil de Semicondutores, contemplando medidas de médio e longo prazo para o desenvolvimento da indústria nacional nesse setor. O assunto é discutido desde 2021 no âmbito da iniciativa Made in Brasil, coordenada pelo Ministério da Economia. O plano pretende aumentar a participação do país no mercado mundial de semicondutores de 2% para 4% nas próximas duas décadas via desoneração da cadeia produtiva, apoio à P&D, estímulo à demanda interna, regime aduaneiro especial e capacitação de recursos humanos.

A indústria brasileira hoje se concentra principalmente nas etapas finais de produção de semicondutores, isto é, no afinamento, corte, encapsulamento e teste desses componentes a partir da manipulação do wafer, importado da Coreia do Sul e de Taiwan. O país chegou a investir em empresas para preencher essa lacuna. Em 2008, criou o Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), empreendimento público com sede no Rio Grande do Sul. Com capacidade para produzir cerca de 20 milhões de chips por mês, o Ceitec tinha em seu portfólio até 2018 sete circuitos integrados de baixa complexidade.

Em 2020, porém, o governo decidiu liquidar a empresa e vender os ativos para o setor privado. Segundo o Ministério da Economia, em seu melhor exercício anual, o empreendimento gerou receita de R$ 7,8 milhões, mas sustentava uma despesa operacional média de R$ 80 milhões por ano desde sua criação. A diferença era coberta pelo Tesouro Nacional. A organização social escolhida para assumir a estatal era a Associação para Promoção da Excelência do Software Brasileiro (Softex), mas o Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu a liquidação. A expectativa era a de que o processo voltasse a ser apreciado pelo órgão de controle em agosto deste ano, mas o tribunal adiou a votação.

Em fevereiro de 2023, o novo governo instituiu um grupo de trabalho interministerial para estudar a reversão do processo de privatização e liquidação da Ceitec, que acabou ganhando uma nova chance para se consolidar, sendo retirada do Programa Nacional de Desestatização (PND). A Nova Ceitec terá como foco a P&D de tecnologias em microeletrônica, nanotecnologia, biotecnologia, IA e internet das coisas (IoT). A empresa também deve buscar parcerias com universidades, institutos de pesquisa, empresas e organizações internacionais para ampliar o seu alcance e impacto.

O aumento expressivo da demanda provocada pela pandemia mostrou ao mundo que os semicondutores são um segmento estratégico fortemente relacionado a questões da soberania nacional. Em função dessas questões, estudos recentes têm chamado a atenção para a necessidade de uma abordagem focada em incentivos para a criação de uma “capacidade mínima viável” em regiões que carecem de alguma ou de todas as etapas da cadeia de abastecimento. Em linha com estes esforços, o Brasil possui posição de destaque na América Latina, considerando o arcabouço de suas políticas setoriais e as tecnologias e capacidades já desenvolvidas, aliadas a um expressivo e crescente mercado consumidor.