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As tecnologias transversais e o futuro do setor produtivo

Países aumentam investimentos em tecnologias estratégicas em meio a um ambiente econômico cada vez mais competitivo

Rodrigo Andrade

As tecnologias transversais, aquelas com alto potencial transformador sobre diferentes setores produtivos, são capazes de impulsionar a inovação em vários campos, ajudando a transformar padrões de produção, modelos de negócio e formas de concorrência nas economias industriais avançadas. É esperado que elas tenham um impacto crescente no mundo nas próximas décadas, dada a sua importância estratégica para a competitividade científica e econômica, e segurança das nações.

Vários países estão investindo nessas tecnologias, por meio de estratégias nacionais de estímulo à ciência, tecnologia e inovação (CT&I). Não por acaso, a produção de publicações científicas sobre elas cresceu 33% entre 2015 e 2019, segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que analisou o desempenho de países em seis tecnologias transversais consideradas estratégicas para o futuro da indústria — inteligência artificial (IA) e robótica, biotecnologia, energia, materiais, nanociência e nanotecnologia, e optoeletrônica — a partir de dados da base Scopus, da editora Elsevier. Somente em 2019, essas tecnologias responderam por 18% da produção científica internacional, desempenho impulsionado sobretudo pelas áreas de IA e robótica.

Essa variação na produção de artigos científicos sobre tecnologias transversais reflete a preocupação de diferentes países em fazer com que suas empresas operem no que se considera ser a fronteira tecnológica, a chamada manufatura avançada ou Indústria 4.0, com processos fabris integrados, conectados e inteligentes.

A comparação entre os países que têm estratégia em andamento revela outros focos em comum: sustentar sua competitividade internacional, desenvolver ecossistemas de inovação, criar empregos e qualificar a população, apoiar empresas de menor porte e zelar pela sustentabilidade ambiental. Nos Estados Unidos, por exemplo, parece haver consenso entre as diferentes alas do governo de que é preciso revitalizar suas companhias para conter a ameaça da China e de outras nações à sua liderança econômica e tecnológica. O país investe em diferentes plataformas de tecnologia digital em setores estratégicos, como o de IA, computação quântica, tecnologia avançada de redes móveis, entre outras.

Uma das principais medidas adotadas nesse sentido foi o Manufacturing USA, rede de institutos criada em 2014 para promover a cooperação entre empresas e instituições acadêmicas em projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de novas tecnologias e processos de manufatura avançados, além de treinamento de mão de obra, visando reduzir os riscos associados à sua incorporação aos processos fabris.

Os Estados Unidos criaram 14 desses institutos entre 2012 e 2017 — atualmente são 16 —, cada um focado em um tipo de processo ou tecnologia. Eles alcançam 1.291 organizações, das quais 844 eram empresas de manufatura e 65% fabricantes de pequeno e médio porte. Estima-se que a estratégia contribua anualmente com US$ 2,3 trilhões para a economia estadunidense, além de promover a criação de mais de 12 milhões de empregos e impulsionar parte expressiva das pesquisas no setor privado em vários campos tecnológicos estratégicos para o futuro do setor produtivo do país.

Há alguns anos, os Estados Unidos também começaram a discutir o chamado Endless Frontier Act, ambicioso programa de investimento em CT&I. A iniciativa propunha a criação de um departamento de tecnologia e inovação na National Science Foundation, principal agência de fomento à ciência básica do país, com aportes de mais de US$ 100 bilhões em cinco anos em pesquisas em inteligência artificial e robótica, energia, computação quântica, tecnologias de comunicação avançada e gerenciamento de dados.

A legislação passou meses em tramitação no Congresso, mudando de forma e de nomes ao longo do tempo. O que começou como Endless Frontier Act se transformou em U.S. Innovation and Competition Act, depois em COMPETES Act, Bipartisan Innovation Act, CHIPS-Plus e, finalmente, em Chips and Science Act, aprovada em fins de 2022.

A China também percebeu a importância das tecnologias transversais para o futuro de sua economia e há quase quatro décadas investe em mecanismos institucionais para promover seu desenvolvimento e adoção pelas empresas. A estratégia levou à formação de grandes conglomerados empresariais que hoje disputam a liderança mundial em tecnologias da informação e comunicação, energias renováveis, solar e eólica, e supercomputadores.

O país possui um setor manufatureiro sofisticado, mas continua a depender da importação de certas tecnologias essenciais, como semicondutores. Para tentar reverter esse cenário, o governo chinês lançou em 2015 uma política industrial para reduzir a dependência de suas empresas de fornecedores externos de alta tecnologia até 2025.

A expectativa é que as companhias chinesas expandam ainda mais sua participação no mercado global de carros elétricos, tecnologias agrícolas, engenharia marítima e aeroespacial, novos materiais sintéticos, biomedicina, infraestrutura ferroviária e robótica avançada. A China também almeja se tornar o centro mundial de inovação em IA até 2030 — o país já é o maior proprietário mundial de patentes de IA.

De modo geral, entre 2016 e 2020, mais de 30 países adotaram estratégias direcionadas à IA. O interesse das nações por essas tecnologias vai além de suas aplicações em diferentes setores produtivos. Em termos gerais, a IA pode ser utilizada em sistemas ciberfísicos para processar e tomar decisões automatizadas, descentralizadas e autônomas. No entanto, ela também pode ser combinada com tecnologias de redes de comunicação e análise de grandes quantidades de dados, dando lastro a soluções de cibersegurança, cada vez mais importantes em um mundo interconectado. A ideia de segurança nacional não se resume mais apenas à capacidade bélica dos países, mas também ao financiamento, desenvolvimento e implementação de tecnologias que garantam a segurança cibernética.

O Brasil, contudo, está ficando de fora desse esforço global. Os resultados do relatório da Unesco, divulgado a cada cinco anos, indicam que o contingente de trabalhos publicados por brasileiros sobre tecnologias transversais pouco variou nos últimos anos. O país saiu de um patamar de 6.699 artigos em 2015 para 8.596 em 2019 — um aumento de 28,3%, o pior desempenho entre as nações dos Brics, do qual fazem parte Rússia, Índia, China e África do Sul. Os números representam um recuo na contribuição do país para a produção internacional nessas áreas: em 2015, o Brasil respondeu por 1,9% das publicações sobre tecnologias transversais; em 2019, esse percentual caiu para 1,8%.

Das seis tecnologias analisadas no relatório da Unesco, a que o Brasil menos se destacou foi a de nanociência e nanotecnologia, ligada, entre outras coisas, à manipulação de átomos e moléculas, e relacionada à concepção de materiais de alto desempenho, novas terapias contra doenças, componentes de microeletrônica e sensores usados na chamada tecnologia quântica. Foram apenas 293 artigos publicados nessa área em 2019, 37 a mais do que em 2015 — no mesmo período, a China dobrou o contingente de trabalhos nesse campo.

A situação é igualmente delicada em optoeletrônica, fundamental para o aprimoramento da capacidade de transmissão de dados e atender a próxima geração de sistemas de comunicação, como o 5G. O Brasil apresentou retração de 15,8% no número de artigos produzidos no período: de 405, em 2015, para 341, em 2019.

O desempenho brasileiro foi um pouco melhor em biotecnologia, área que envolve técnicas de intervenção no genoma de organismos vivos ou suas partes para obter ou modificar produtos, melhorar plantas ou animais ou desenvolver micro-organismos com fins definidos. O país registrou um aumento de 50,8% no número de trabalhos nessa área, saindo de 684 artigos em 2015 para 1.032 em 2019. Esses números representam um ligeiro aumento da participação do país no esforço internacional de pesquisa na área. Em 2015, o Brasil contribuiu com 4,1% dos estudos em biotecnologia no mundo; em 2019, esse percentual subiu para 5,5%. A performance brasileira se deve ao desenvolvimento de pesquisas em áreas de interesse da agroindústria, e, em menor medida, aos desdobramentos modernos desse campo na medicina, com estudos sobre DNA recombinante e anticorpos monoclonais.

Essa situação traz riscos e incertezas. A falta de um plano estratégico nacional que estimule a criação de novas companhias de base tecnológica e a modernização de empresas existentes pode agravar a situação de vulnerabilidade científica tecnológica e a dependência nas cadeias internacionais de valor nas quais o Brasil se encontra. A implementação de políticas que estimulem o desenvolvimento de tecnologias transversais e facilitem seu uso pelas empresas contribuiria para a formação de competências e a consolidação de uma base tecnológica própria, capaz de definir tendências no cenário global.

Ainda há tempo para reverter esse cenário. A influência dessas tecnologias é considerada disruptiva no curto prazo em poucos segmentos industriais. Na maioria deles, a transformação será gradual. Resta saber o quanto estas tecnologias serão priorizadas na próxima política nacional de inovação.