Artigo
Aquisições de medicamentos pelo governo federal
Resultados de levantamento feito por pesquisadores do CTS-Ipea podem contribuir para a elaboração de estratégias de redução dos custos do sistema de saúde
Publicado em 31/07/2023 - Última modificação em 29/04/2024 às 17h48
Fernanda De Negri, Carlos Eduardo R. de Mello, Adriano Cabral Linhares Mourthe
1. Introdução
O governo brasileiro é responsável por um volume significativo de compras de medicamentos, que também representam uma parcela não desprezível do total de gastos com a saúde pública no país. De acordo com Vieira (2018), os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com medicamentos aumentaram de R$ 14,3 bilhões em 2010 para pouco mais de R$ 18 bilhões em 2016. Esse aumento contribuiu para que a participação das despesas com medicamentos no SUS saltasse de 11% para 16% no período em análise.
Infelizmente, apesar de sua relevância, há uma carência de estudos que analisem de maneira pormenorizada o comportamento das compras de medicamentos pelo governo federal. Este texto procura suprir esta lacuna apresentando a evolução das compras de medicamentos pelo governo nos últimos 20 anos e identificando padrões e tendências relevantes.
2. Dados e metodologia
Neste trabalho, investigou-se as compras de medicamentos do governo federal nos últimos 20 anos, a partir do Módulo ComprasNet do Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG).
O SIASG é um sistema do governo federal para dar suporte à gestão de processos de compras, contratações e serviços gerais. Ele é utilizado por diversos órgãos e entidades da administração pública, inclusive aqueles responsáveis pela aquisição de medicamentos. O ComprasNet é o módulo do SIASG responsável por centralizar informações e facilitar a gestão das compras governamentais, promovendo maior eficiência, transparência e controle dos recursos públicos.
Os produtos adquiridos pelo governo federal são identificados, nesse sistema, por um catálogo específico, chamado “Catálogo de Materiais” - CATMAT, que mantém o registro da descrição e a identificação única de todos os materiais objetos de compras públicas organizado por uma taxonomia de classes[1]. A classe 6505 deste catálogo engloba drogas e medicamentos e foi utilizada neste trabalho para identificar e analisar todas as aquisições de medicamentos realizadas pelo governo federal no período de 2000 a 2021. Importante salientar que o SIASG contém, também, parte das transações realizadas por Estados e Municípios, que foram excluídas do escopo desta análise.
Cada registro corresponde a uma compra e contém informações detalhadas sobre a descrição do produto, seu código identificador, preço, quantidade adquirida, órgão demandante, nome do fornecedor do produto, além de informações sobre a modalidade de compra, data, justificativas de inexigibilidade/dispensa de licitação, litígios, etc. Ao todo, são 1.294.524 registros e 27 atributos (variáveis).
Todos os produtos adquiridos pelo governo federal presentes na base do SIASG (inclusive os medicamentos) possuem um identificador único, chamado de Código BR, de preenchimento obrigatório para todos os órgãos da Administração Pública Federal. No caso de drogas e medicamentos, cada Código BR corresponde a um medicamento, sendo definido por seu princípio ativo, dosagem e forma de apresentação. Portanto, um mesmo um mesmo princípio ativo pode corresponder a diversos Códigos BR, caso existam variações em sua dosagem (20mg/mL, 100mg/mL, etc) e forma de apresentação (comprimido, solução suspensa, etc).
Um limitador importante nos dados do SIASG é não dispor de informações acerca da classe terapêutica de cada medicamento. Esta informação pode ser particularmente útil para investigar a concorrência e identificar eventuais substitutos existentes no mercado. Assim, cada um dos medicamentos presentes nas compras do governo federal foi associado a uma classe terapêutica, a partir de tabela disponível na relação de medicamentos registrados no Brasil, pela Anvisa[2]. Como a classificação da Anvisa baseia-se no nome do medicamento (e não em um código padronizado) a identificação da classe foi feita por este nome, o que nem sempre gerou associações perfeitas, uma vez que há erros ou diferenças de grafia dos medicamentos, sobretudo na base do SIASG. Contudo, um esforço de mapeamento manual para os medicamentos mais relevantes em termos de volume de gastos foi realizado, de modo a garantir uma cobertura significativa dos gastos. Este processo de associação automatizada e manual permitiu a identificação das classes terapêuticas de cerca de 90% do total das compras de medicamentos realizadas pelo governo federal.
As informações monetárias, como preços e valores das compras foram deflacionadas pelo IPCA e trazidas a valores constantes de 2022.
3. Evolução das compras
O primeiro aspecto a se destacar na análise das compras de drogas e medicamentos do governo federal é o seu peso no mercado farmacêutico brasileiro. Segundo a Secretaria Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos - SCMED (2020), o faturamento do setor farmacêutico brasileiro, em 2019, atingiu mais de R$86 bilhões, sendo R$59 bilhões provenientes de medicamentos de rota química. Neste ano, o governo federal foi responsável pela aquisição de mais de R$14 bilhões em drogas e medicamentos, ou cerca de 16% do faturamento total do setor.
Embora o número de produtos distintos adquiridos pelo governo federal tenha se mantido relativamente estável na última década, em torno de 40 a 50 mil itens por ano[3], o valor das compras federais de medicamentos tem crescido de forma acentuada desde 2008. Uma das possíveis explicações desse aumento é a centralização das compras de medicamentos do SUS no governo federal e não nos estados e municípios, diminuindo a pulverização das compras e aumentando o poder de barganha do setor público nas negociações. Esse fenômeno é fruto de uma decisão da administração pública federal no final dos anos 2000, e ocorre especialmente no caso de medicamentos complexos e de alto custo[4].
Outra possível razão que tem contribuído, embora em menor medida, para a ampliação dos gastos com medicamentos pelo governo federal é a judicialização. É o caso quando cidadãos recorrem à Justiça para obter acesso a medicamentos não disponíveis ou não fornecidos gratuitamente pelo SUS. Vieira (2020) mostra que as despesas ocasionadas por decisões judiciais cresceram sua participação nos gastos federais em medicamentos de 4% para mais de 7%, no período de 2012 a 2018. O programa Farmácia Popular, criado em 2004, também contribuiu para o crescimento dessas despesas (Vieira, 2018).
Gráfico 1. Quantidade de itens e valor dos medicamentos adquiridos pelo governo federal entre 2000 e 2021 (valores reais a preços de 2022)
Fonte: Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG). Elaborado pelos autores
Independentemente do peso de cada um desses ou de outros possíveis fatores, o fato é que existe uma tendência forte de crescimento dos gastos com medicamentos pelo governo federal. No Gráfico 1, pode-se observar que estes gastos passaram de pouco mais de R$2 bilhões no ano 2000 para cerca de R$18 bilhões em 2020 e para R$25 bilhões em 2021.
4. Distribuição das compras
A distribuição das compras de medicamentos por classe terapêutica pode ajudar a entender o perfil dos medicamentos adquiridos pelo governo federal, entre outras coisas porque a classe terapêutica define um mercado relevante de análise.
A Anvisa classifica os medicamentos e produtos farmacêuticos registrados em mais de 600 classes terapêuticas. No conjunto das compras do governo federal, entre 2000 e 2021, foram registradas aquisições de medicamentos em mais de 200 classes diferentes, sendo as principais, em termos de valores, apresentadas na Tabela 1.
Tabela 1. Valor total dos medicamentos adquiridos pelo governo federal no período 2000-2021, segundo suas principais classes terapêuticas (em R$ milhões – valores reais de 2022)
Classe terapêutica |
Valor (R$ milhões) |
% |
||
Vacinas |
41.130 |
18% |
||
Antineoplásico |
15.708 |
7% |
||
Antiviróticos |
14.648 |
6% |
||
Frações do sangue ou plasma |
13.975 |
6% |
||
Antinflamatórios |
11.671 |
5% |
||
Antiretroviral |
11.471 |
5% |
||
Antinflamatórios antireumáticos |
11.127 |
5% |
||
Enzima para reposição |
9.909 |
4% |
||
Antiviróticos (inibe replicação virótica) |
7.841 |
3% |
||
Imunomodulador |
7.438 |
3% |
||
Não classificados* |
29.599 |
13% |
||
Outras classes terapêuticas |
57.345 |
25% |
||
Total |
231.864 |
100% |
||
Fonte: Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG) e Anvisa. Elaborado pelos autores. Nota: Valores deflacionados pelo IPCA. * Medicamentos que não tiveram sua classe terapêutica identificada pelos autores e aqueles classificados, pela própria Anvisa, como “outros produtos não enquadrados em classe terapêutica específica”
Os diversos tipos de vacinas constituem o principal item de compra do governo federal no grupo drogas e medicamentos, com R$41 bilhões de aquisições entre 2000 e 2021, ou 18% do total. Depois das vacinas, medicamentos para tratamento do câncer (antineoplásicos) representam 7% do total das compras, antiviróticos são 6%, derivados do sangue (6%), antirretrovirais (5%) e antiinflamatórios (5%) estão entre os principais grupos de medicamentos comprados pelo governo federal.
A cada ano, entre 10 ou 15 classes terapêuticas mais frequentes dos medicamentos adquiridos pelo governo federal representam mais de 70% do valor total dessas compras, muito embora o peso de cada classe tenha variado ao longo do período. Entre 2000 e 2005, por exemplo, os principais tipos de medicamentos adquiridos pelo governo federal foram antiviróticos e medicamentos homeopáticos[5], que responderam por quase metade das compras naquele período, seguidos por frações do sangue/plasma e pelos antirretrovirais. No período entre 2006 e 2010, os antiviróticos e as vacinas continuaram como as duas classes principais, mas ganharam participação os antineoplásicos e as enzimas para reposição, que são utilizadas para doenças genéticas raras nas quais o paciente não produz quantidades suficientes de determinada enzima. Nesse período, também apareceram como uma classe relevante nas compras federais, os imunomoduladores, medicamentos que têm a capacidade de regular o sistema imunológico a fim de fortalecer a resposta do organismo contra infecções ou câncer ou mesmo de diminuir a resposta desse sistema quando ele estiver desregulado ou hiperativo. Por fim, no período 2015 a 2021 cresce ainda mais a participação das vacinas nas compras federais, principalmente em virtude da aquisição de imunizantes para a pandemia de Covid-19.
Gráfico 2. Participação percentual nas compras federais de medicamentos das classes terapêuticas mais relevantes no período 2000 a 2021, de acordo com sua participação em diferentes subperíodos
Fonte: Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG) e Anvisa. Elaborado pelos autores. Esse gráfico contém a participação, nos subperíodos apresentados, das classes terapêuticas mais relevantes no período completo, que vai de 2000 a 2021. Por essa razão, algumas classes terapêuticas relevantes em algum período em particular podem não aparecer nesse gráfico
Assim como são concentradas em determinadas classes terapêuticas, as compras federais também são o são em um número relativamente pequeno de medicamentos. Em média, todos os anos, os 20 principais medicamentos representam uma parcela significativa dessas compras. No início dos anos 2000, eles representavam mais de 80% das compras totais de drogas e medicamentos. Esse percentual foi se reduzindo paulatinamente ao longo dos anos, embora, em 2021, as 20 principais drogas tenham representado 56% do total do gasto federal em medicamentos.
Apesar dessa concentração de compras em cada ano, o ranking dos 20 medicamentos mais comprados varia anualmente, embora algumas substâncias se mantenham sempre no topo dos mais comprados. Entre os medicamentos mais comprados pelo governo federal, está o fator VIII recombinante, que é um medicamento utilizado no tratamento de distúrbios de coagulação sanguínea, como a hemofilia A. Os medicamentos com o sufixo "abe", como adalimumabe, infliximabe e trastuzumabe, também são significativos nas compras do governo. Eles são anticorpos monoclonais, projetados para se ligarem a alvos específicos no organismo, como proteínas ou células, e interferir em processos biológicos associados a doenças diversas, desde artrite reumatoide até câncer. Outros destaques são medicamentos com o sufixo "vir", como darunavir, sofosbuvir e dolutegravir, que são antivirais usados no tratamento de diferentes infecções.
Gráfico 3. Valor total e participação percentual das compras dos 20 principais medicamentos adquiridos pelo governo federal a cada ano: 2000 a 2021
Fonte: Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG) e Anvisa. Elaborado pelos autores
5. Considerações finais
Os dispêndios públicos em medicamentos são bastante concentrados em poucos itens, que representam parcela considerável do gasto total. Sendo assim, a análise da evolução dessas compras é fundamental para subsidiar as estratégias públicas para a melhoria da qualidade desses gastos e, por que não, a redução dos custos do SUS. A identificação dos principais itens de gasto pode contribuir na elaboração de estratégias para a redução dos custos do sistema de saúde.
6. Referências
SCMED. 2020. “Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico”. Brasília, DF: Anvisa.
Vieira, Fabiola Sulpino. 2018. “Evolução do gasto com medicamentos do Sistema Único de Saúde no período de 2010 a 2016”. Texto para Discussão n. 2356. Brasilia: Ipea.
———. 2020. “Direito à Saúde no Brasil: seus contornos, judicialização e a necessidade da macrojustiça”. Texto para Discussão n. 2547. Brasilia: Ipea.
[1] https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/manuais/manuais-antigos/manual-siasg-catalogo/manual-catmat-e-catser-2020.pdf
[2] https://dados.gov.br/dados/conjuntos-dados/medicamentos-registrados-no-brasil
[3] Cada item é caracterizado por um código BR diferente.
[4] https://bvsms.saude.gov.br/bvs/sus/pdf/dezembro/governo_compra_remedios_alto_custo_0712.pdf
[5] Os medicamentos homeopáticos desaparecem do ranking dos principais medicamentos adquiridos pelo governo federal após 2005
Este trabalho foi financiado pelo Ministério da Saúde por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) n. 06, de 2022.