Artigo
Regulação de mercados mediados por plataformas digitais no Brasil
Uma discussão em aberto
Publicado em 21/08/2023 - Última modificação em 29/04/2024 às 17h49
Tulio Chiarini[1], Diandra Carolina de Oliveira V. da Rocha[2], Luiz Carlos T. Delorme Prado[3]
Em mercados mediados por plataformas digitais, o diagnóstico dos problemas derivados de sua dinâmica é complexo. Esses ambientes são formados por um conjunto de elementos — fundamentados em sistemas de armazenamento, processamento e análise de big data — que incorporam tecnologias da informação e comunicação, bem como sistemas de IA e de computação em nuvem. Tais elementos materializados em interfaces atuam como intermediários em um cenário digital, facilitando trocas, transações e relacionamentos, criando valor entre os agentes econômicos. Essas interfaces, conhecidas como plataformas digitais, estão presentes em diversos setores e apresentam efeitos variados em cada segmento, exibindo alcances distintos e gerando impactos, tanto no âmbito econômico quanto em outros aspectos da vida social.
Para dimensionar a economia brasileira de plataformas, além das big tech (Amazon, Alphabet, Alibaba, Microsoft, Apple dentre outras), recente pesquisa identificou mais de 500 empresas controladoras dessas interfaces fundadas no país, das quais 82% foram estabelecidas a partir de 2011 e concentram-se em São Paulo e Rio de Janeiro. Porém, ao que o levantamento indica, essas plataformas são dependentes das big tech.
A regulação de plataformas
Regulação econômica é um instrumento de política pública, assim, seu ponto de partida é a determinação dos objetivos perseguidos pelo Estado. Toda intervenção pressupõe a necessidade de alterar resultados do mercado para impedir distorções ou alcançar determinados resultados. O ponto de partida para qualquer regulação é um diagnóstico sobre problemas e resultados que se espera obter.
Algumas condutas de um conjunto de plataformas trazem preocupações relacionadas à concorrência. Dentre as que possuem impacto negativo, destacam-se o poder de “gatekeeper” e de “self-preferencing”. O primeiro significa que essas plataformas têm controle sobre como os agentes as usam, e o segundo refere-se a como algumas plataformas dão mais vantagens aos produtos que elas mesmas oferecem em comparação com os de outras empresas que usam a plataforma para comercialização. Isso faz com que seus próprios produtos sejam mais vistos.
Diante dessas condutas, diferentes jurisdições estão discutindo e introduzindo marcos regulatórios, com diferentes avanços legislativos. A União Europeia (Digital Markets Act), os Estados Unidos (Platform Competition and Opportunity Act e Ending Platform Monopolies Act) e Japão (Act on Improving Transparency and Fairness of Digital Platforms) já possuem leis aprovadas, enquanto o Reino Unido (Digital Markets, Competition and Consumer Bill) possui proposta em análise.
Embora as leis já aprovadas nesses países difiram substancialmente, elas impõem um conjunto de obrigações destinadas a garantir o comércio justo e a facilidade de entrada e saída de empresas nesses mercados, promovendo a competição. Essas leis são aplicadas a apenas um número restrito de empresas com poder de mercado, baseado no tamanho (quantidade de usuários e volume de negócios) e na sua capacidade de influenciar os mercados.
Os países da América Latina e Caribe estão atrasados nessas discussões, embora haja avanços em alguns países. Na Colômbia, por exemplo, foi publicado um decreto regulando as plataformas que operam no setor de turismo (Decreto n. 1.836/2021), exigindo que elas disponibilizem dados sobre as transações ao governo quando demandadas para investigar e sancionar a competição desleal. Ademais, ainda na Colômbia, um Proyecto de Ley (PL n. 302/2023), em discussão no Senado, visa a regulamentar a contratação de pessoas – incluindo os aportes à segurança social – nas plataformas digitais e o seu poder de gatekeeper.
No contexto brasileiro, quatro medidas se destacam. O Marco Civil da Internet (Lei n. 12.967/2014) estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, LGPD (Lei n. 13.709/2018 e alterada pela Lei 13.853/2019) veio como uma segunda etapa. Além disso, há a consideração da “Lei das Fake News” no Senado Nacional, que trata de regras relativas à transparência na Internet (PL n. 2.630/2020). De acordo com o Projeto de Lei (PL), as plataformas de redes sociais e de serviços de mensagens (sediadas ou não no Brasil) deverão tornar público o número de contas registradas, o número de usuários ativos e dados sobre os conteúdos patrocinados relacionados a assuntos sociais e políticos.
Embora constituam avanços no que diz respeito à economia e sociedade de plataformas, essas medidas não tratam de práticas competitivas. Atualmente, na Câmara dos Deputados, o PL n. 2.768/2022 está em discussão, buscando estabelecer normas para a organização, funcionamento e operação desses mercados.
O PL 2.768/2022
O PL foi apresentado na Câmara dos Deputados em 10/11/2022, e atualmente encontra-se na Comissão de Desenvolvimento Econômico (CDE) para debater os seguintes temas; a) experiências internacionais no desenvolvimento e regulamentação dos mercados digitais; b) competência de regulação e os mercados digitais; c) competitividade e concorrência nos mercados digitais; e d) empreendedorismo nos mercados digitais.
O PL parte da tese de que as grandes empresas de tecnologias concentram poder de mercado e estendem suas atividades a mercados adjacentes (setores relacionados ou próximos ao setor principal dessas empresas), praticando condutas de self-preferencing e gatekeeping).
Diante desse problema diagnosticado e, apesar de estar em linha com preocupações internacionais relacionadas aos desafios dos mercados mediados por plataformas, alguns pontos merecem reflexão:
1. Quanto à clareza da ementa do PL 2.768
Embora a ementa afirme que o PL disponha “sobre a organização, o funcionamento e a operação das plataformas digitais que oferecem serviços ao público brasileiro e dá outras providências”, o documento foca apenas em questões de condutas anticompetitivas.
Vale ressaltar que a regulação das plataformas é um tema multifacetado, que deve abranger questões relacionadas à concorrência, à privacidade e utilização de dados, à segurança cibernética, à liberdade de expressão, à disseminação de desinformação, ao mercado de trabalho, à evasão fiscal, entre outros. Nesse contexto, a ementa do PL deve ser mais focada, pois o PL não trata de questões como privacidade de dados, liberdade de expressão e disseminação de desinformação, por exemplo, as quais são tratadas na LGPD e no PL das Fake News.
2. Quanto à definição de plataformas digitais
O Art. 6° do PL diferencia os “operadores de plataformas digitais” das “plataformas digitais”. No entanto, define “operador de plataformas digitais” como sendo “provedor de aplicações de internet”, o que é impreciso. De acordo com o Marco Civil da Internet, os provedores são empresas que oferecem um conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de computadores ou outros dispositivos conectados à internet. Seguindo esse conceito, não fica claro se o “provedor” de um aplicativo disponibilizado em lojas virtuais (como a AppStore) seria o proprietário da loja virtual (no caso, a Apple) ou as empresas que controlam os aplicativos disponibilizados na loja virtual (como a Uber, que disponibiliza seu aplicativo na AppStore).
Já a “plataforma digital em si”, isto é, a arquitetura tecnológica, é definida no PL como “aplicações de internet” executadas em diversas modalidades: “a) serviços de intermediação online; b) ferramentas de busca online; c) redes sociais online; d) plataformas de compartilhamento de vídeo; e) serviços de comunicações interpessoais; f) sistemas operacionais; g) serviços de computação em nuvem; h) serviços de publicidade online ofertados por operador das plataformas digitais”.
Embora o PL deixe claro que essa lista possa ser alterada, o legislador confunde plataformas com seus diferentes serviços e com seus modelos de remuneração. Por exemplo, “serviços de publicidade online” é uma estratégia de remuneração, portanto, não é uma modalidade de execução da plataforma digital. Também não o é os “serviços de computação em nuvem”.
3. Quanto ao controle essencial
O Art. 2° aborda a necessidade de regulamentação e supervisão das plataformas que possuam controle de acesso. A proposta do Art. 9° estipula que "serão considerados detentores de poder de controle de acesso essencial aqueles que obtiverem receita operacional anual igual ou superior a R$ 70 milhões provenientes da oferta de serviços para o público brasileiro".
No entanto, existem duas questões. Primeiramente, o PL não especifica a metodologia para calcular esse valor. Isso levanta uma interrogação de como determinar a receita de empresas estrangeiras que operam plataformas no Brasil, mas não têm presença física no país.
Além disso, o conceito de poder de controle de acesso se baseia exclusivamente na receita operacional bruta. Outras abordagens poderiam ser implementadas como os números de usuários finais e empresas dependentes das plataformas.
4. Quanto às obrigações das plataformas digitais
O Art. 10° aborda de maneira abrangente as obrigações das plataformas, o qual inclui: fornecer de forma transparente as informações à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel); tratar de forma isonômica e não discriminatória os usuários; utilizar adequadamente os dados coletados; e não se recusar a prover acesso à plataforma digital a usuários profissionais.
Embora tenha sido mencionado no Art. 4° que deverão ser observados os fundamentos, princípios e objetivos relacionados à LGPD, é notável que o legislador apresenta de forma tangencial a gestão dos dados, questão crítica na economia de plataformas.
5. Quanto à atribuição à Anatel de regular as plataformas digitais
A justificação do PL apresenta a Anatel como a única agência reguladora para plataformas digitais no Brasil. Esse posicionamento demonstra pouca compreensão sobre a diversidade de setores nos quais as plataformas estão inseridas.
A classificação das plataformas conforme os serviços que oferecem revela a complexidade subjacente à regulação. Essas plataformas abrangem uma gama de atividades, incluindo marketplaces (como Amazon e Mercado Livre); redes sociais (por exemplo, Facebook e Instagram); ferramentas de busca (como Google); transporte de passageiros (por exemplo, Uber e 99), entregas (como iFood, Rappi e Loggi); hospedagem (como Airbnb) e distribuição de vídeos on streaming (como Netflix e Filme Filme).
Por exemplo, o mercado audiovisual de vídeo vem sofrendo um processo de “plataformização” com o surgimento de plataformas de streaming. Recentemente, a Agencia Nacional de Cinema (Ancine) lançou um relatório sobre o mercado brasileiro de streaming de vídeo, mostrando que o país é o líder na América Latina em relação ao número de plataformas desse tipo em operação. Enquanto o Prime Video oferece mais de 7 mil filmes (sendo a plataforma com mais conteúdo no Brasil), menos de 8% são de produção brasileira, e enquanto a Netflix oferece mais de 5 mil filmes, menos de 6% são produzidos no país. É a Ancine que, de acordo com a MP 2.228-1 de 2001, deve regular a presença de obras cinematográficas e videofonográficas nacionais nos diversos segmentos de mercado. Nesse caso, o mercado audiovisual de vídeo mediado por plataformas digitais deveria ser regulado pela Anatel?
Considerações finais
O PL n. 2.768/2022 sinaliza as preocupações da casa legislativa em relação à dinâmica competitiva das plataformas digitais, mas está longe de dar conta das complexidades da economia de plataformas.
A discussão aqui proposta contribui para o debate sobre regulação econômica em mercados mediados por plataformas digitais, trazendo questionamentos sobre o PL. Foram destacados os seguintes pontos:
- Incertezas sobre o escopo: O PL aborda as "plataformas digitais que prestam serviços ao público brasileiro", porém a delimitação exata desse escopo não é clara;
- Ambiguidade na definição de plataformas digitais: Existe confusão entre diferentes aspectos, como arquiteturas tecnológicas, serviços oferecidos e modelos de remuneração;
- Definição insuficiente de controle essencial: O critério utilizado pelo PL para avaliar o poder de controle baseia-se na receita operacional anual, desconsiderando fatores cruciais, como o número de usuários;
- Generalização das obrigações das plataformas digitais;
- Inadequação da autoridade reguladora: a escolha exclusiva da Anatel como autoridade reguladora revela falta de compreensão sobre a diversidade das plataformas.
Para assegurar uma regulamentação ampla, é de extrema importância que esses aspectos sejam tratados de maneira substancial. Isso garantiria que as regras sejam justas, aplicáveis e capazes de lidar com as complexidades dos mercados mediados por plataformas digitais, além de fomentar um ambiente concorrencial saudável. Por fim, recomenda-se que o tema seja debatido a exaustão por legisladores e acadêmicos, pois as alternativas postas à mesa carecem de uma abordagem satisfatória.
[1] Pesquisador do CTS/Ipea. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[2] Doutoranda em Economia da Indústria e da Tecnologia no Instituto de Economia da UFRJ e bolsista no Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[3] Professor no Instituto de Economia da UFRJ. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.