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Os desafios do emprego durante o doutorado

Exercício de atividades profissionais pode trazer consequências negativas para o desenvolvimento dos estudantes e para os resultados de suas pesquisas, especialmente no caso do doutorado

Daniel Gama e Colombo

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) publicou recentemente a Portaria CAPES 133, de 10 de julho de 2023, permitindo que alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorado acumulem bolsas de pesquisa com o exercício de atividades remuneradas. A medida reconhece a difícil realidade dos alunos e a insuficiência do valor das bolsas concedidas pelo governo federal. Porém, o exercício de atividades profissionais pode trazer consequências negativas para o desenvolvimento dos estudantes e para os resultados de suas pesquisas, especialmente no caso do doutorado, devido ao prazo de duração e complexidade das atividades exigidas para titulação. Esses pontos precisam ser considerados pela agência e gestores de pós-graduação das universidades, para que sejam consideradas medidas a fim de minimizar eventuais danos e potencializar sinergias entre tarefas profissionais e acadêmicas.

Duas importantes tendências do sistema nacional de pós-graduação são relevantes para a discussão da medida: a expansão acelerada e a insuficiência de recursos para financiamento dos estudantes. Nas últimas duas décadas, o número de alunos de doutorado cresceu de maneira expressiva, passando de cerca de 30 mil em 1998 para próximo de 152 mil em 2021. Crescimento similar foi observado no número de programas em funcionamento e de alunos titulados. Essa não é uma característica específica do Brasil, tratando-se de uma tendência observada em diferentes países com níveis de intensidade variados.

Todavia, o financiamento dos estudantes não acompanhou esse movimento. Embora o número de bolsas de doutorado concedidas pelas agências de fomento federais (CAPES e CNPq) tenha crescido significativamente (de 13 mil em 1998 para cerca de 55 mil em 2021), esses financiamentos ainda representavam pouco mais de um terço do número de estudantes no país em 2020. Além disso, o valor das bolsas não acompanhou a inflação das últimas décadas, perdendo significativamente seu poder de compra. Mesmo considerando o aumento concedido em fevereiro deste ano, o valor real da bolsa ainda é cerca de 40% inferior ao que doutorandos recebiam em 1998 (valores reajustados pelo IPC-A para julho/2023).

Reconhecendo a dificuldade desse contexto, a Portaria CAPES 133/2023 permite aos alunos de doutorado acumular a bolsa com qualquer trabalho remunerado, possibilidade que antes estava restrita a atividades de docência e àquelas relacionadas à área de atuação do discente e de interesse para sua formação acadêmica (Portaria Conjunta CAPES e CNPq 1, de 15 de julho de 2010). Nos termos da nova Portaria, cabe às universidades e programas de pós-graduação definir as regras específicas em regimento interno. O acúmulo não deve implicar uma redução ou flexibilização dos deveres dos alunos, que permanecem obrigados a cumprir todos os seus compromissos junto ao programa e à CAPES (art. 4º da Portaria 133/2023).

O emprego durante o doutorado (fora do programa) não é uma exceção, ocorrendo em diferentes países (como Rússia, Espanha e Estados Unidos), embora a proporção de alunos trabalhando varie. Em uma pesquisa recente com alunos de diversos países, 19% dos respondentes declararam trabalhar além de estudar, sendo o principal motivo a necessidade de pagamento das despesas (‘to help make ends meet’). No Brasil, uma amostra de alunos de programas de doutorado até 2016 revelou que aproximadamente 60% possuíram algum vínculo formal de emprego durante o programa.

Essa realidade suscitou um debate acerca das consequências desse acúmulo de atividades para o desenvolvimento dos alunos. A visão predominante aponta impactos negativos do emprego, que passou a ser identificado como uma importante causa da evasão e de prazos maiores para obtenção do título. O argumento central que embasa essa perspectiva é de que esses estudantes precisam realizar esforços adicionais para compatibilizar suas atividades acadêmicas e profissionais, o que representa um custo pessoal (não financeiro) maior em termos de tempo e dedicação. Ademais, alunos que trabalham possuem menos tempo para estudar, pesquisar e se dedicar às tarefas necessárias para progredir e concluir um programa de doutorado. Outro motivo relevante citado é que esses alunos teriam um menor nível de integração na universidade, por realizarem menos atividades coletivas e de colaboração com professores e colegas. Tais fatores, somados ao alto nível de exigência, levariam uma parcela maior desses doutorandos a dilatar as atividades no tempo ou, em última instância, a abandonar o programa.

Os estudos empíricos existentes em geral confirmaram esses argumentos. Análises quantitativas em diferentes países (em sua maioria desenvolvidos) identificaram que o emprego durante o doutorado está associado a maiores taxas de evasão e tempo para conclusão. Em uma análise do caso brasileiro, estimou-se que as chances de alunos empregados abandonarem o doutorado pode chegar a ser até 20% maior do que aqueles que não trabalharam durante o programa. Análises em outros países sugerem que o tempo adicional necessário para conclusão pode ser superior a um ano. Da mesma forma, estudos qualitativos baseados em entrevistas reportaram que o desgaste pelo trabalho é uma das principais razões sugeridas pelos alunos para não conclusão de seus estudos.

A questão torna-se mais complexa se levarmos em conta que a necessidade de emprego para complementar a bolsa não se dá de maneira equivalente para todos os estudantes, estando relacionada ao nível de renda familiar e outras variáveis socioeconômicas. Assim, o emprego pode trazer reflexos para a equidade do sistema de pós-graduação, não sendo claro de antemão se tais efeitos seriam positivos ou negativos. Por um lado, o acúmulo de bolsa de pesquisa com atividades profissionais pode viabilizar o ingresso de estudantes de baixa renda que, sem o complemento de renda, não teriam condições de cursar o doutorado. Esse argumento é reforçado pela evidência no Brasil e em outros países de que indivíduos de famílias mais ricas possuem maior probabilidade de acesso à pós-graduação. Mas, por outro lado, se estudantes de baixa renda tendem a recorrer mais a atividades profissionais, isso também leva esses alunos a estarem em condições menos favoráveis para conclusão das atividades e obtenção do título.

Esses resultados sugerem, em primeiro lugar, que a superação do desafio do financiamento dos estudantes passa necessariamente pela elevação de recursos e identificação de novas fontes de financiamento, para que menos estudantes dependam do acúmulo de atividades durante o doutorado.

Todavia, considerando o quadro atual, medidas que possam contribuir para a melhoria imediata da situação dos estudantes também são importantes. A permissão para o acúmulo de bolsas com outras remunerações nos termos da nova regulamentação da CAPES está em linha com esse objetivo. É importante reconhecer, no entanto, que essa decisão acarreta riscos para o desenvolvimento dos estudantes, que devem ser mitigados, seja por parte das agências ou pelas universidades, que receberam autonomia para disciplinar as condições em que estudantes podem exercer atividades profissionais enquanto bolsistas.

O desenvolvimento desse debate trouxe elementos que podem contribuir para a formulação e desenho dessas medidas. O mote central é o reconhecimento da heterogeneidade das fases do doutorado e dos tipos de trabalho, identificando os fatores ou características que podem amplificar ou reduzir os efeitos. Três pontos levantados merecem especial destaque: a fase ou momento do doutorado; a ocupação desenvolvida pelo estudante; e a natureza jurídica do vínculo empregatício ou do empregador.

A fase do doutorado

Obter um título de doutorado usualmente demanda de 4 a 6 anos no Brasil, e as atividades realizadas variam conforme a evolução do aluno no programa (aprovação nas disciplinas, seminários, exame de qualificação, realização da pesquisa e elaboração da tese), assim como os níveis de dedicação e esforço exigidos em cada momento. Da mesma forma, ao longo do ‘processo produtivo do doutorado’, o estudante adquire novas informações que podem modificar suas escolhas. Por esses motivos, espera-se que os diferentes fatores (dentre os quais o emprego) apresentem efeitos com intensidades distintas em cada fase do programa.

Alguns estudos empíricos reconheceram essa complexidade, mensurando como diversas variáveis encontram-se relacionadas com as trajetórias dos estudantes a cada etapa (usualmente considerada anualmente). No caso brasileiro, estima-se que o emprego esteja associado a resultados negativos (menores chances de conclusão e maiores chances de abandono) principalmente nos últimos anos do doutorado (do quarto ao sexto). Em geral, essa é a fase em que os alunos executam suas pesquisas e concluem a tese, um período de difícil monitoramento do aluno, uma vez que, em muitos casos, observa-se apenas os resultados finais do trabalho, através da avaliação da tese e de artigos derivados.

Isso sugere a necessidade de um cuidado maior com o emprego nessas etapas finais do doutorado. Pode-se considerar uma restrição maior ao acúmulo de bolsas com outras atividades nesse período, exigindo-se, por exemplo, um número mínimo de horas voltadas ao doutorado, ou um limite máximo de horas semanais do vínculo empregatício. Outra possibilidade é adotar um acompanhamento maior dos alunos que acumulam rendimentos, através de cronogramas que apresentem entregas e pontos de controle ao longo do tempo, que permitam monitorar o desenvolvimento da pesquisa do aluno.

O tipo de trabalho

Um segundo ponto a ser considerado é que a ocupação específica desempenhada pelo estudante pode alterar o resultado, à luz das possíveis sinergias com os estudos e investigações científicas. Empregos que levam o estudante a interagir com professores ou a participar de atividades acadêmicas podem contribuir para sua integração na universidade, enquanto um trabalho que apresente componentes de pesquisa ou cujo conteúdo se aproxime do objeto da tese pode trazer aportes e insumos úteis para o desenvolvimento do aluno. Nesse sentido, estudos empíricos identificaram que estudantes que trabalham dentro da universidade possuem taxas de evasão e tempo estimado de conclusão menores do que aqueles que trabalham em ambientes ‘não acadêmicos’. Os efeitos positivos podem ser de tal monta que um estudo concluiu que estudantes empregados na universidade chegam a apresentar resultados melhores (menores taxas de evasão) do que aqueles que foram financiados por bolsas.

Assim, pode-se afirmar que havia embasamento para a regulamentação anterior das agências de fomento que restringiam os bolsistas a atividades de docência ou de interesse para a formação acadêmica. Ainda que o retorno a essa regra não seja viável ou desejável, pode-se considerar algum esquema de incentivos ou direcionamento dos alunos a essas ocupações, a fim de aproveitar as potenciais sinergias e favorecer o desenvolvimento de suas atividades no doutorado.

A natureza jurídica do vínculo ou empregador

Os setores público e privado apresentam diferenças marcantes em termos de mercado de trabalho e dinâmica do emprego. Algumas das principais diferenças relevantes para essa discussão são o nível de estabilidade no emprego, o ‘viés educacional’ do setor público (que tende a contratar mais profissionais com nível de instrução elevado), e, no caso de ocupações que envolvam atividades de pesquisa e desenvolvimento, uma maior autonomia para propor e executar projetos de interesse do empregado (a pesquisa no setor público não acadêmico estaria ‘entre a universidade e o setor privado’).

Considerando esses argumentos, foi possível comprovar, para o caso brasileiro, que alunos de doutorado empregados no setor público apresentaram resultados melhores do que aqueles que trabalham em instituições privadas. A diferença entre setores varia dependendo do ano do doutorado, mas, considerando todos os anos conjuntamente, servidores e empregados públicos podem ter chances até 80% maiores de conclusão do programa e obtenção do título.

Esses resultados sugerem a importância de atenção especial aos alunos que acumulam bolsas com atividades em empresas e organizações privadas, pois esses são os que apresentam maiores riscos de prejuízos significativos à luz de sua dupla jornada. Além das citadas propostas de acompanhamento e monitoramento, universidades e programas de pós-graduação também podem adotar medidas para facilitar a compatibilização de atividades e o progresso dos alunos. Da mesma forma, agências de pesquisa podem flexibilizar prazos e obrigações impostas aos alunos bolsistas que tenham esse tipo de vínculo, permitindo a eles um desenvolvimento mais adequado a sua realidade (ainda que tome um tempo mais longo para conclusão do programa). Por fim, pode-se considerar a inclusão de regras e critérios no Sistema Nacional de Avaliação de Pós-Graduação que não penalizem os programas que admitem alunos com emprego privado e que necessitam de tempo adicional para titulação.