Artigo

Experiências internacionais de precificação e acesso a medicamentos: O caso do Instituto Pasteur

Artigo discute êxito da instituição francesa em impulsionar a inovação e a transferência de tecnologias

Tulio Chiarini

As relações entre universidades, institutos de pesquisa e empresas têm sido uma prioridade em políticas públicas em diferentes países, remontando pelo menos à promulgação da Stevenson-Wydler Technology Innovation Act (emendada pela Federal Technology Transfer Act) e da Bayh-Dole Act, nos Estados Unidos, nos anos 1980. A primeira estabeleceu a transferência tecnológica como parte integrante das atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) realizadas em laboratórios públicos e permitiu o estabelecimento de escritórios de transferência tecnológica, enquanto a segunda concedeu aos institutos públicos autorização pioneira para licenciar suas patentes.

Em conjunto, as três leis desempenharam papel fundamental em fomentar a transferência de tecnologia proveniente de pesquisas financiadas com recursos públicos para o setor privado, impulsionando a comercialização e a aplicação prática de descobertas científicas, e contribuindo para a ampliação de inovações.

Outros países de renda alta também adotaram medidas legais inspiradas na legislação estadunidense para acelerar a conversão de ideias e descobertas científicas em produtos comercialmente viáveis. A França, por exemplo, promulgou a Lei n. 82-610 em 1982, orientando a P&D no país. Em 1999, essa lei foi emendada pela Lei Allègre (Lei n. 99-587), a qual adicionou a exploração comercial de patentes e licenças à missão das universidades, equiparando-a ao ensino e à pesquisa. Também introduziu a possibilidade de universidades e institutos de pesquisa estabelecerem escritórios de transferência de tecnologia, conhecidos como o Serviço de Atividades Industriais e Comerciais (Services d'Activités Industrielles et Commerciales). No caso francês, evidências empíricas demostraram que a Lei Allègre aumentou a probabilidade de universidades e institutos de pesquisa reivindicarem sua parte dos direitos de propriedade sobre as invenções de seus cientistas.

Embora pareça haver uma convergência internacional de políticas públicas voltadas a incentivar a transferência de tecnologia, o mero estabelecimento de um aparato jurídico-institucional, por si só, não é suficiente para garantir o sucesso desse processo. Uma ampla gama de fatores influencia o andamento da transferência, muitos dos quais relacionados às estruturas organizacionais e aos perfis tecnológicos dos indivíduos e das entidades envolvidos.

Institutos de pesquisa com histórico de interação bem-sucedida com o setor industrial, como o Institut Pasteur, reconhecido pelas pesquisas na área médica, puderam, em grande medida, se beneficiar das melhorias legais destinadas a estimular a transferência de tecnologia.

É nesse contexto que apresentamos alguns dados do referido instituto, focando na evolução dos valores dos contratos de P&D com o setor industrial e em informações relacionadas à propriedade intelectual no período de 2010 a 2022. Nossa análise baseia-se em documentos públicos, incluindo relatórios anuais de atividades (Rapports Annuels), relatórios financeiros (Comptes) e plano estratégico (Plan Stratégique).

1. O instituto

O Institut Pasteur é uma fundação privada sem fins lucrativos dedicada à pesquisa científica, à prevenção e ao tratamento de doenças infecciosas, fundada no século XIX pelo químico Louis Pasteur (1822-1895). É reconhecida por suas contribuições na área médica e por seu envolvimento ativo na descoberta e no desenvolvimento de vacinas, diagnósticos e terapias. Atualmente, conta com a colaboração de uma equipe de quase 3 mil funcionários, todos baseados em Paris.

Além de sua sede, o instituto estabeleceu uma extensa rede de cooperação científica conhecida como Rede Pasteur (Pasteur Network), composta por 33 instituições parceiras em 25 países. Essa rede se estende a áreas endêmicas, permitindo o acesso a uma ampla gama de patógenos monitorados e estudados.

No Brasil, a instituição francesa mantém parcerias com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Universidade de São Paulo (USP), com as quais criou o Institut Pasteur de São Paulo, organização privada sem fins lucrativos inaugurada em 2023. Além disso, está em andamento a consolidação da Plataforma Fiocruz-Pasteur no campus da Fiocruz em Eusébio, Fortaleza (CE), voltada a pesquisas em imunologia e imunoterapia, abrangendo não apenas doenças infecciosas, mas também degenerativas e câncer.

A principal missão do Institut Pasteur é gerar conhecimento no campo da saúde pública e explorar suas potenciais aplicações, de modo a transformá-lo em inovação. Para concretizar esse processo, apoia-se na Rede Pasteur e em parcerias com o setor privado para efetuar a escalabilidade e conduzir ensaios clínicos. Nesse contexto, os royalties representam uma fonte crucial de receita para a instituição.

Entre 2010 e 2022, os royalties representaram, em média, 11% da receita global do instituto, a qual demonstrou um crescimento nesse período (Figura 1). Outras fontes de financiamento também desempenham papéis de destaque, incluindo subsídios públicos, doações, prestação de serviços ao setor privado e contratos de P&D com empresas privadas.

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Figura 1 – Orçamento anual, Institut Pasteur, 2010–2022

Fonte: Rapports Annuels e Comptes de l’Institut Pasteur 2010–2022. Elaboração do autor

Nota: Os valores nominais foram deflacionados a partir do índice de preços do consumidor disponível pelo Banco Mundial (Consumer price index (2022 = 100) – France)

Determinar o impacto das mudanças legais francesas destinadas à promoção da transferência de tecnologia na intensidade dessa transferência no caso do Institut Pasteur é uma tarefa complexa. Isso porque o instituto é historicamente conhecido por manter relações próximas com a indústria. No entanto, uma alteração legal que pode ter contribuído para acelerar o transbordamento tecnológico foi a disposição que autoriza os pesquisadores a criarem startups para aproveitar os resultados de suas pesquisas realizadas no exercício de suas funções.

Embora a primeira iniciativa de criação de uma spin-off tenha ocorrido em 1997, foi em 2019, ano de promulgação da Lei Allègre, que o Institut Pasteur estabeleceu sua "Aceleradora de Inovação". Desde então, essa iniciativa resultou na criação de 30 startups, das quais 20 estão ativas e seis estão listadas na bolsa de valores.

A seguir, apresentamos a receita proveniente de contratos de P&D com o setor privado, indicadores de propriedade intelectual e os recebimentos de royalties em uma perceptiva temporal, indicadores tratados aqui como proxy do grau de inventividade do Institut Pasteur.

2. A transferência de tecnologia em números

     2.1. Acordos e contratos de P&D com a indústria

De 2010 a 2022, os contratos de P&D em colaboração com a indústria somaram € 87,3 milhões, 2% da receita total no mesmo período, com um crescimento inicial saindo de € 3,3 milhões em 2010 para € 8,8 milhões em 2012. No entanto, entre 2013 e 2018, houve uma queda nessas receitas, que só foi revertida em 2019 (Figura 3), culminando em € 12,6 milhões em 2022.

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Figura 2 – Receita proveniente de contratos de P&D com a indústria e percentual em relação ao total do orçamento anual, Institut Pasteur, 2010–2022

Fonte: Rapports Annuels e Comptes de l’Institut Pasteur 2010–2022. Elaboração do autor

Nota: Os valores reais foram deflacionando a partir do índice de preços do consumidor disponível pelo Banco Mundial (Consumer price index (2022 = 100) – France)

     2.2. Propriedade intelectual

Outro indicador que nos ajuda a avaliar o grau de inventividade do Institut Pasteur é o número anual de declarações de invenção (“déclarations d’invention”) submetidas pelos seus pesquisadores. Essas declarações fazem parte de um processo em que os pesquisadores oficialmente notificam a autoridade competente, como o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Institut National de la Propriété Industrielle), ou o próprio empregador sobre a descoberta de uma potencial invenção. Em outras palavras, eles comunicam que conceberam uma nova ideia, produto ou processo com potencial para patenteamento ou exploração comercial.

A declaração de invenção representa uma etapa preliminar nas políticas de propriedade intelectual na França e permite a tomada de medidas apropriadas para proteger os direitos de propriedade intelectual relacionados a essa invenção. Essa declaração, contudo, não assegura a concessão de uma patente. Ela é o primeiro passo para iniciar o processo de proteção da invenção.

A declaração de invenção fornece ainda uma prova documental do momento em que a invenção foi concebida, o que pode ser relevante para estabelecer a data de prioridade em eventuais disputas futuras. De 2010 a 2022, o Institut Pasteur formalizou, em média, 56 novas declarações de invenção por ano, com destaque para 2020, com um total de 73 novas declarações (Figura 3).

Figura 3

Figura 3 – Depósitos de patentes (tramites prioritários) e Declaração de invenção, Institut Pasteur, 2010–2022

Fonte: Rapports Annuels e Comptes de l’Institut Pasteur 2010–2022. Elaboração do autor

No momento, o instituto mantém um vasto portfólio de patentes, abrangendo cerca de 2.150 vigentes distribuídas em 211 famílias distintas. Entre 2010 e 2022, a instituição depositou, em média, 24 novas patentes anuais com trâmite prioritário, mecanismo que permite aos inventores apresentarem uma demanda de patente inicial de forma simplificada, prioritária e provisória às autoridades competentes. As patentes com trâmite prioritário concedem uma vantagem de prioridade ao inventor, assegurando que a data de apresentação do pedido seja reconhecida em outros países, caso ele decida estender a proteção para além da França, dentro de 12 meses a partir da data do depósito, em um país membro da Organização Mundial do Comércio (OMC), enquanto mantém o benefício da data do depósito francês.

O ano de maior destaque em termos de novas patentes com trâmite prioritário foi 2020, quando foram apresentados 42 novos pedidos (Figura 3). Desses pedidos, 14 estavam diretamente relacionados a tecnologias de combate ao SARS-CoV-2, incluindo potenciais vacinas, testes PCR, testes de soroneutralização, sorológicos de anticorpos e anticorpo terapêutico.

No que se refere às receitas provenientes de royalties de direito intelectual, o período de 2010 a 2022 registrou um montante de € 428 milhões, resultando em uma média anual de quase € 33 milhões. Embora em 2022 essa receita tenha representado 6,6% do orçamento total do instituto, em anos anteriores, esse valor chegou a ser mais do que o dobro. Em 2011, por exemplo, os royalties compuseram 15,3% do orçamento (Figura 4).

Figura 4

Figura 4 – Receita proveniente de royalties e percentual em relação ao total do orçamento anual, Institut Pasteur, 2010–2022

Fonte: Rapports Annuels e Comptes de l’Institut Pasteur 2010–2022. Elaboração do autor

Nota: Os valores reais foram deflacionando a partir do índice de preços do consumidor disponível pelo Banco Mundial (Consumer price index (2022 = 100) – France)

3. Considerações finais

O êxito do Institut Pasteur em impulsionar a inovação é evidenciado pelos dados apresentados neste texto. De 2010 a 2022, foram contabilizadas 735 declarações de invenção, 293 depósitos de patentes prioritárias, € 87,3 milhões em receitas provenientes de contratos de P&D com a indústria e € 474,7 milhões em royalties.

Embora seja reconhecido que o “modelo pasteuriano” não seja diretamente replicável em sua totalidade, mutatis mutandis, ele pode servir como referencial para orientar melhorias em outras instituições. Ter o instituto como um benchmark permite identificar práticas bem-sucedidas que podem ser adaptadas de acordo com outras realidades e contextos. Isso, por sua vez, tem o potencial de impulsionar a eficácia e a eficiência dos processos de inovação, e fortalecer a governança das atividades inventivas em outras instituições de pesquisa.

Por fim, é crucial destacar que o Institut Pasteur visa produzir conhecimento na área da saúde e viabilizar que esse conhecimento se transforme em novos medicamentos e tratamentos. Essa é uma distinção importante, por exemplo, entre o papel da Fiocruz, que além de produzir conhecimento na área de saúde, também fabrica vacinas e medicamentos. Diferentemente da Fiocruz, a instituição francesa não possui capacidade de produzir protótipos e produtos em ambientes relevantes de produção, ficando restrita ao ambiente laboratorial. Portanto, as parcerias com o setor privado são vitais para o Institut Pasteur. Em termos de maturidade tecnológica, as tecnologias desenvolvidas pela instituição estão em um estágio relativamente baixo, o que ajuda a explicar a significativa importância dos royalties em sua estratégia institucional.

* Este artigo faz parte de uma série sobre precificação e acessibilidade de medicamentos a partir da visão e da atuação de instituições internacionais.

** Este trabalho foi financiado pelo Ministério da Saúde por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) n. 06, de 2022.