Artigo
Retomada das políticas industrial e de inovação no Brasil
Principais avanços e desafios
Publicado em 22/11/2023 - Última modificação em 29/04/2024 às 17h52
Marcos Toscano e Daniel Colombo
O novo governo federal retomou a agenda de políticas industrial e de estímulo à inovação, abandonadas nos últimos anos. Diferentes medidas foram anunciadas ao lado da recomposição das estruturas de governança, a partir de um novo marco que as direciona para a superação de diferentes desafios da sociedade, tendo na sustentabilidade um eixo transversal de intervenção. Esse movimento acompanha uma tendência internacional de recuperação da centralidade do Estado na promoção do desenvolvimento econômico e social. No entanto, o cenário interno coloca novos desafios para o sucesso dessa agenda: maior fragmentação política, dificuldade de obtenção de consensos e enfrentamento de críticas por problemas do passado. Este texto tem por objetivo apresentar os principais avanços promovidos nos dez primeiros meses do novo governo relacionados a incentivos à inovação e ao desenvolvimento industrial (e sua gestão), bem como discutir os desafios das etapas seguintes do processo de reconstrução dessas políticas.
Nos últimos anos, voltou a ganhar força a ideia de intervenção estatal para apresentar respostas rápidas e à altura de importantes desafios globais, especialmente na área de ciência, tecnologia e inovação (CT&I). A emergência climática, a crise sanitária desencadeada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2) e a guerra da Ucrânia, entre outros choques, afetaram profundamente a economia e as cadeias produtivas globais, comprometendo o abastecimento de insumos e de produtos. Ao mesmo tempo, esses eventos colocaram em evidência a necessidade de limpeza da matriz energética e a urgência no desenvolvimento de novos fármacos e vacinas para o enfrentamento da pandemia. Na maior parte dos países, coube ao Estado assumir a liderança no enfrentamento dessas questões, seja definindo estratégias, regulando mercados ou ampliando o gasto público (uma revisão das abordagens adotadas pelo setor público em diferentes nações pode ser encontrada aqui).
Nesse contexto, os sistemas de CT&I foram particularmente demandados, devido à necessidade de desenvolvimento de novas tecnologias de saúde e de redução das emissões de gases de efeito estufa. Segundo relatório divulgado recentemente pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), 2020 marca o primeiro caso de recessão econômica global em que não houve retração dos investimentos brutos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) nos países do bloco. Pelo contrário, houve um crescimento de aproximadamente 2,1% dos valores investidos. Não só o volume, mas também a intensidade desses investimentos aumentou, alcançando 2,7% do Produto Interno Bruto (PIB) dos países do grupo em 2021, um aumento de 0,4 pontos percentuais em relação a 2010.
A complexidade dos ecossistemas de inovação também demandou um rearranjo nos papeis e nas relações entre os atores envolvidos nesse processo. Coube então aos governos centrais catalizar a inovação, a partir da definição de objetivos e do desenho de intervenções específicas. Alguns marcos desse novo momento são o Plano Industrial Verde para a Era de Emissões Líquidas Zero, aprovado pela União Europeia em fevereiro deste ano, e o Inflation Reduction Act dos Estados Unidos, que visa reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 40% até 2030, com investimentos para a produção de energia limpa e combate às mudanças climáticas estimados em US$ 370 bilhões.
Para dar conta desse novo cenário e de seus desafios, o arcabouço conceitual e analítico de política industrial e de inovação foi substancialmente aprimorado nos últimos anos, abrandando recomendações de cunho protecionista e voltando-se a medidas de estímulo à exportação, competitividade e sustentabilidade, com ênfase em instrumentos como crédito público, financiamento de exportações e garantias de empréstimos e operações (uma recente revisão de literatura sobre essas ferramentas pode ser encontrada aqui).
A ideia de políticas orientadas por “missões” ganhou força como estratégia para mobilizar e coordenar recursos e atores para o enfrentamento de desafios sociais claros e mensuráveis (societal challenges), mas o potencial desse arranjo para atingir metas ambiciosas ainda é objeto de questionamentos e necessita de mais evidências.
Até o ano passado, o Brasil dava poucos sinais de que acompanhava essa tendência internacional. Na contramão dos países da OCDE, os dispêndios nacionais em P&D reduziram 6,3% (em dólares PPC) entre 2019 e 2020, assim como a intensidade desses investimentos (de 1,21% do PIB em 2019 para 1,14% em 2020). O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal fonte federal de financiamento a atividades científicas, teve queda da execução orçamentária de aproximadamente 43% entre 2019 e 2021 (em reais de dezembro de 2021 corrigidos pelo IGP-M), sendo o impacto negativo nos investimentos de aproximadamente 32%.
A nova gestão do poder executivo federal sinalizou a mudança dessa linha de ação ainda no período de transição, em fins de 2022, com o retorno de uma política de desenvolvimento econômico proativa. O relatório final da transição de governo de 2022 recomendava a recriação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e a liberação integral dos recursos do FNDCT, ressaltando a importância da inovação, da reindustrialização e do desenvolvimento sustentável no processo de transição para uma economia verde e descarbonizada, no contexto da “reintegração soberana do Brasil no mundo”.
Os primeiros meses do governo foram marcados por uma intensa agenda de lançamentos — e, sobretudo, relançamentos — de programas de desenvolvimento social, ambiental, educação, saúde e infraestrutura. Seguindo essa ordem temática, e a título de exemplificação, podem ser citados o Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), o Escola em Tempo Integral (antigo Mais Educação), o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (antigo Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa), o Mais Médicos, o Farmácia Popular, o Brasil Sorridente, o Luz Para Todos, o Minha Casa Minha Vida e o Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em comum, esses programas passaram por melhorias incrementais, mas herdam de seus predecessores os objetivos gerais, formatos de governança, métodos de execução e, na maioria dos casos, os nomes e as marcas.
Na área de desenvolvimento industrial e inovação, o ano começou com decisões orçamentárias e de financiamento importantes, como a retomada da Taxa Referencial (TR) para remuneração do crédito lastreado no FNDCT , a recomposição orçamentária do FNDCT no volume total de R$ 9,6 bilhões para 2023, a possibilidade de remuneração do funding do FAT repassado ao BNDES pela TR e a expansão do Fundo Clima, que deverá captar mais de R$ 10 bilhões e diversificar sua carteira de projetos com foco em indústria, inovação e mobilidade verdes.
No entanto, a agenda de lançamentos de políticas e programas temáticos foi mais tímida do que a observada nas áreas sociais, de infraestrutura e ambiental. Não houve relançamento dos grandes programas e marcas anteriores, como o Brasil Maior, Inova Empresa, Ciência Sem Fronteiras e Pronatec. Durante esse período, a agenda foi marcada por medidas de estímulo pontual, como o incentivo fiscal de R$ 1,8 bilhões concedido em junho deste ano às montadoras como forma de induzir a renovação da frota de carros de passeio, caminhões e ônibus — o benefício, porém, não foi estruturado como um programa permanente de governo. Outra importante decisão foi a reversão da liquidação da CEITEC S.A., empresa pública dedicada à produção de semicondutores — a publicação do decreto de reversão da liquidação, no entanto, não foi precedida de cerimônia ou anúncio público; tampouco houve detalhamento de qual será a estratégia nacional para o segmento de semicondutores.
Também podem ser destacados lançamentos setoriais, como os dez programas estratégicos anunciados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) para os recursos não-reembolsáveis do FNDCT a partir de 2023 (havendo previsão de R$ 1,25 bilhão ainda este ano). Além disso, o MCTI, o MDIC, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciaram conjuntamente (sem a participação de um órgão central de governo) o programa Mais Inovação Brasil, que pretende destinar cerca de R$ 60 bilhões para atividades inovativas no país; o programa, entretanto, ainda não possui um documento de referência que indique seus objetivos, metas e prioridades, sendo, por enquanto, apenas a soma das capacidades de fomento em quatro anos do FNDCT e dos fundos de apoio à inovação operados pelo BNDES. O valor parece constituir um subconjunto do montante de recursos anunciado pelo governo para apoio à “neoindustrialização”, que também é uma soma de fontes e alcança a cifra de R$ 106 bilhões em quatro anos.
Apesar da clara intenção do novo governo de acompanhar o movimento global de retomada da política industrial e de inovação, ainda há poucas medidas concretas nesse sentido. Por ora, as principais evidências dessa nova tendência referem-se à reconstituição e ao fortalecimento das estruturas de governança e planejamento. Importantes exemplos nesse sentido são a reconstituição e retomada dos trabalhos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) e do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT), colegiados que tiveram grande relevância para as políticas de CT&I no passado, mas que estavam desativados ou paralisados há alguns anos. O CCT é o principal fórum de debate sobre políticas científicas e não se reunia desde agosto de 2018, tendo sido reformulado e reinstalado em julho deste ano. Já o CNDI esteve paralisado por sete anos, tendo sido reconstituído com uma estrutura ampliada, que conta com a participação de 20 ministros de Estado e 21 representantes da sociedade civil.
O novo governo também criou órgãos de governança do novo PAC, que contempla investimentos para a recuperação e a expansão da infraestrutura científica, e reconstruiu o Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (GECEIS) e a convocação da V Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (V CNCTI), que será responsável por propor recomendações para a elaboração da Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação 2024-2030. Há ainda a retomada do planejamento de longo prazo da política industrial e de inovação no âmbito do Plano Plurianual 2024-2027, não obstante o tema ser abordado separadamente em programas de titularidade do MCTI e do MDIC.
Ainda não se sabe como essas estruturas de governança e planejamento vão interagir, quais instâncias novas ainda podem surgir e o que acontecerá com as políticas públicas e os espaços institucionais herdados de governos anteriores. Nessa última categoria, merecem destaque a Política Nacional de Inovação (com sua Câmara de Inovação) e a Estratégia Brasileira de Transformação Digital (com seu Comitê Interministerial para a Transformação Digital - CITDigital). Ademais, o Plano de Transformação Ecológica, que vem sendo articulado pelo Ministério da Fazenda, ainda não apresentou uma estrutura de governança própria nem ações e investimentos prioritários nos setores abrangidos pelas políticas industrial e de inovação.
A multiplicidade de iniciativas e a retomada das estruturas de governança nesses dez primeiros meses de governo sugerem claramente a emergência de um novo momento para as políticas industrial e de inovação no Brasil, baseadas em um paradigma de intervenção estatal mais abrangente e expressiva, alinhada com o cenário observado nos países da OCDE e com a magnitude e gravidade dos problemas a serem enfrentados nos próximos anos. As próximas etapas no desenvolvimento dessas políticas colocam desafios importantes no âmbito do próprio governo, incluindo a coerência e harmonização das propostas em um arcabouço amplo de atuação do Estado, e a coordenação de alto nível das estruturas existentes, a fim de estimular a sinergia e complementaridade entre elas e minimizar as potenciais sobreposições.