Artigo
Experiências internacionais de precificação e acesso a medicamentos: o modelo de negócios do Medicines Patent Pool
Artigo artigo traz considerações sobre primeiro pool de patentes voltado ao licenciamento voluntário na área da saúde
Publicado em 29/11/2023 - Última modificação em 29/04/2024 às 17h52
Graziela Ferrero Zucoloto e Larissa de Souza Pereira
O acesso a medicamentos, especialmente os mais modernos e protegidos por direitos de propriedade intelectual, tem sido um desafio crescente, sobretudo para os sistemas de saúde de países em desenvolvimento. Muitas estratégias foram adotadas nas últimas décadas para tentar minimizar tais dificuldades, como doações, negociações e descontos. Considerando as barreiras patentárias, as licenças para produção e comercialização de produtos genéricos são consideradas as mais eficientes (Martinelli et al., 2020).
Dada a importância dessa estratégia, este artigo traz considerações sobre o Medicines Patent Pool (MPP), primeiro pool de patentes voltado ao licenciamento voluntário na área da saúde, apresentando seus objetivos, modelo de atuação e principais resultados alcançados pela fundação.
Pool de patentes
O pool de patentes é um acordo feito com ou entre titulares de patentes para licenciar um subconjunto desses direitos de propriedade intelectual entre si ou com terceiros.
O primeiro pool foi criado em 1856 nos Estados Unidos para reduzir litígios na indústria de máquinas de costura (Lampe e Moser, 2010). A estratégia foi então utilizada em diversos setores, incluindo aeronaves, ferrovias e rádio. Em vários casos, esses pools envolveram a colaboração entre competidores, reduzindo a concorrência, aumentando preços e prejudicando o bem-estar do consumidor. Não por acaso, desapareceram após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ressurgindo no final da década de 1990 com uma lógica diferente: passaram a ser criados para solucionar problemas de coordenação no desenvolvimento de tecnologias complexas causadas por um aumento exponencial nos depósitos de patentes e no número de litígios em setores caracterizados por propriedade intelectual fragmentada (necessidade de muitas patentes para proteção de um único produto), como as tecnologias de informação e comunicação. Nesses casos, os pools reduzem os custos de transação por meio do chamado “one-stop shop”, que permite negociações únicas ao invés de uma série de acordos de licenciamento independentes.
Até a criação do MPP, os pools não eram utilizados no setor de saúde. Isso porque as invenções farmacêuticas não apresentavam características de tecnologias complexas, mas discretas — ou seja, princípios ativos podem ser protegidos exclusivamente por uma patente central. Desse modo, problemas de coordenação não eram uma questão relevante no setor. Entretanto, como será apresentado, diversos autores mostram que os pools têm gerado resultados positivos nesse setor.
Medicines Patent Pool
O MPP foi criado em Genebra, na Suíça, em 2010 pela organização internacional Unitaid, com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de uma ideia proposta por James Love em 2002.
O MPP é uma fundação sem fins lucrativos que atua para promover o acesso a medicamentos essenciais por meio do licenciamento voluntário não exclusivo, a fim de possibilitar tratamentos em países de baixa e média renda. De forma resumida, um princípio ativo entra para o pool quando seu detentor assina um contrato de licenciamento. A partir desse momento, os fabricantes de genéricos que aderem ao MPP têm permissão para produzir e vender sua versão nos países incluídos no acordo, sem risco de violação de propriedade intelectual (Martinelli et al., 2020).
Foi inicialmente lançado com o propósito de ampliar o acesso a tratamentos para pessoas com HIV/Aids, expandido posteriormente para incluir tratamentos para hepatite C e tuberculose. Esse escopo foi novamente ampliado em 2018, após estudo de viabilidade, passando a incorporar outros medicamentos essenciais patenteados presentes na Lista Modelo de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2021, o MPP passou a incluir também vacinas contra a Covid-19 e tecnologias voltadas para a preparação contra novas pandemias. Os medicamentos definidos como prioritários são dispostos em Relatórios de Priorização, revisados anualmente, e levam em consideração a importância do medicamento, os desafios para seu acesso e a existência de patentes nos países de baixa e média renda.
Os tratamentos são disponibilizados para um conjunto específico de países em desenvolvimento. Até 2018, as licenças cobriam todos os países de baixa renda e entre 50% e 80% do bloco de países designados como de renda média, segundo classificação do Banco Mundial. Os termos e as condições das licenças são negociados de modo a melhorar as opções de tratamento para o maior número de pessoas vivendo nesses países, e as negociações ocorrem de forma individualizada, com cada titular de patente, de acordo com as características de cada produto e as necessidades de saúde pública. Os royalties geralmente são fixados em, no máximo, 5% das vendas.
No âmbito dessas parcerias, o MPP oferece uma gama de serviços e aconselhamento técnico, incluindo apoio no desenvolvimento, registro e fornecimento de medicamentos. A seleção dos fabricantes de genéricos é feita por meio de um processo de Manifestação de Interesse (EOI — Expression of Interest). O formulário contempla detalhes sobre as capacitações e o histórico de fabricação de medicamentos, pesquisa e desenvolvimento (P&D), conformidade regulatória e financeira, além de planos específicos para os produtos que deseja licenciar, os quais devem abranger o desenvolvimento, a produção, os procedimentos regulatórios, a distribuição e os investimentos previstos.
Outro papel importante do MPP é o compartilhamento das informações coletadas, com destaque para o MedsPal. De acordo com Martinelli et al. (2020), antes do MPP, apenas os depositantes tinham informações precisas sobre o status de patentes de seus produtos em diferentes países. Ao compilar tais informações e difundi-las como um bem público, a assimetria de informações para os fabricantes de genéricos e as agências de compras foi fortemente reduzida, facilitando a entrada de novos produtores.
Além da Unitaid e da OMS, atualmente o MPP possui parcerias com governos, organizações da sociedade civil, fundações, agências de financiamento, dentre outros atores, que auxiliam na compreensão das prioridades de saúde pública e na identificação das lacunas de acesso.
A Figura 1 apresenta os tratamentos por doença e por produtores de medicamentos inovadores (1a) e de genéricos (1b) que atuam junto ao MPP.
Figura 1 — Parceiros do MPP na produção de tratamentos
a. Parcerias MPP com fabricantes de medicamentos de referência
Fonte: MPP
b. Parcerias MPP com fabricantes de genéricos
Fonte: MPP
Na Tabela 1 é possível identificar o número de países onde os medicamentos licenciados foram desenvolvidos, registrados e comercializados.
Tabela 1 – Número de países com patente e licenciamento do MPP por medicamento, doença e status do licenciamento
Fonte: MPP. Elaboração das autoras. Data de extração: 12 de novembro de 2023
Em detalhamento da Tabela 1, o Mapa 1 apresenta os países para os quais o MPP possibilitou o licenciamento de medicamentos para o tratamento da Covid-19, hepatite C e/ou HIV/Aids. A lista de países em que há patentes e licenciamentos do MPP para cada uma dessas doenças, assim como o rol de medicamentos por país, está disponível no mapa interativo.
Mapa 1 – Patente e licenciamento do MPP por país e por doença
Fonte: MPP. Elaboração das autoras. Data de extração: 12 de novembro de 2023
O Brasil está na lista de acordos envolvendo o lopinavir, ritonavir (LPV/r), medicamento não patenteado no país, além de tecnologias em desenvolvimento e análise para HIV/Aids, malária e tuberculose. Também aparece como integrante do Programa de Transferência de Tecnologia de mRNA.
Avaliações de resultados
O MPP faz avaliações anuais de suas atividades, as quais incluem, indicadores de impacto econômico e de saúde. Realiza ainda monitoramentos trimestrais do progresso dos parceiros fabricantes de genéricos no desenvolvimento, no registro e na venda de medicamentos licenciados, divulgados em relatórios anuais. De acordo com o relatório de 2022, até dezembro deste ano, o pool assinou 36 licenças de tecnologias de saúde, estabeleceu parceria com 58 fabricantes de 16 países e desenvolveu 25 produtos, possibilitando o fornecimento de 34,7 bilhões de doses de tratamento, uma economia de US$ 1,5 bilhão e até 27 mil mortes evitadas. Até 2025, 30 milhões de pessoas se beneficiarão anualmente dos produtos de saúde licenciados pelo MPP.
Além dos resultados publicados em relatórios, estudos recentes têm buscado avaliar o impacto da atuação do MPP. Não encontramos estudos sugerindo a inexistência de impacto positivo na atuação das licenças avaliadas.
Juneja et al. (2017) estimaram as economias geradas pelas licenças negociadas pelo MPP para medicamentos antirretrovirais de 2010 a 2028 em US$ 2,3 bilhões, o que representa uma razão custo-benefício de 1:43 — ou seja, para cada US$ 1 gasto pelo MPP, a comunidade global de saúde pública economizou US$ 43. Segundo os autores, esse montante permite que mais de 24 milhões de pessoas recebam terapia antirretroviral de primeira linha em países de baixa e média renda por um ano, aos preços médios de hoje. Os autores destacam ainda que, em alguns casos, uma licença MPP pode diminuir o percentual de royalties estabelecidos em acordos de licenciamentos feitos anteriormente.
Martinelli et al. (2020) isolaram o efeito do MPP em relação a outros acordos de licenciamento já existentes nos mercados selecionados, mostrando que o pool tende a melhorar o acesso a medicamentos ao aumentar a concorrência entre os produtores de genéricos. No entanto, o resultado inovador do trabalho foi indicar que esse acesso é promovido também pela eliminação da assimetria de informações sobre os status dos direitos de propriedade intelectual de medicamentos entre mercados geográficos, o que indica a importância do MPP também na promoção da transparência.
Já Galasso e Schankerman (2021) avaliaram como o MPP afeta a concessão de licenças, o lançamento e as vendas de medicamentos, utilizando um painel com 173 produtos farmacêuticos e 129 países no período 2005-2018. Os autores demonstraram um aumento imediato e significativo nas licenças concedidas para produtoras de genéricos quando uma patente é incluída no MPP, ainda que esse resultado seja heterogêneo entre os países. O real impacto da entrada dos medicamentos no mercado e sua participação nas vendas, entretanto, foi menor do que o observado nas licenças.
Por fim, um dos mais recentes e abrangentes trabalhos sobre o tema é de Wang (2022). A autora construiu um conjunto de dados inédito a partir de contratos de licenciamento, compras públicas, ensaios clínicos e aprovações de medicamentos. Usando métodos de diferenças em diferenças, verificou que o pool resultou em aumentos no fornecimento de medicamentos genéricos (cerca de sete pontos percentuais), especialmente em países com proteção patentária mais forte. Ela também constatou que o pool aumenta, ainda que de forma modesta, P&D subsequentes a aprovações de produtos farmacêuticos.
Apesar dos resultados positivos identificados em todos os artigos analisados, a atuação da MPP sofre críticas, especialmente pelas restrições geográficas presentes na maior parte de suas licenças, que exclui países como o Brasil (MSF, 2020; Chaves, 2016). A pandemia de Covid-19, que parecia alterar esse cenário, não foi suficiente para promover mudanças, mantendo as licenças limitadas a alguns países.
Presente e futuro
Apesar de inspirado em experiências existentes há mais de um século, o MPP é um modelo de negócios relativamente recente no setor farmacêutico e em constante aprimoramento.
As mudanças em andamento e os objetivos atuais e futuros estão sintetizados na Estratégia 2023-2025. A ampliação de sua área de atuação é uma delas, abrangendo doenças não transmissíveis, saúde materna, além das vacinas de mRNA e produtos biológicos.
Outra mudança refere-se às escolhas tecnológicas: se no passado o MPP concentrou-se principalmente em medicamentos orais de moléculas pequenas, nos últimos anos expandiu seu alcance para tecnologias mais complexas, como formulações de ação prolongada. E, com algumas exceções, usualmente as atividades de licenciamento do MPP começavam com medicamentos em ensaios clínicos de fase 3, após o desenvolvimento clínico ou somente depois que o produto tivesse sido priorizado por organizações de saúde global. A partir da citada estratégia, o MPP expande seu trabalho para fases anteriores, buscando antecipar a exploração das oportunidades de licenciamento a fim de reduzir o tempo entre a aprovação do produto e seu acesso em países de baixa e média renda.
Ainda que análises adicionais sobre os resultados do pool sejam necessárias, os resultados observados até aqui mostram que modelos alternativos para desenvolvimento e disseminação de tecnologias farmacêuticas podem ser o caminho para promover o acesso de medicamentos às populações mais necessitadas.
* Este artigo faz parte de uma série sobre precificação e acessibilidade de medicamentos a partir da visão e da atuação de instituições internacionais.
** Este trabalho foi financiado pelo Ministério da Saúde por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) n. 06, de 2022.