Artigo

Experiências internacionais de precificação e acesso a medicamentos: Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi)

Pesquisadores do CTS-Ipea analisam atuação da organização sem fins lucrativos nas últimas décadas

Graziela Ferrero Zucoloto e Francisco Walsh Levy

A iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês para Drugs for Neglected Diseases initiative) é uma organização sem fins lucrativos fundada em 2003 em Genebra, na Suíça. Sua fundação remonta à organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), que almejava destinar parte do que ganhara com o Prêmio Nobel da Paz de 1999 para ajudar no combate a doenças negligenciadas. Entre 1975 e 1999, embora representassem 11% da carga global de doenças, esse grupo recebeu o registro de somente 1% dos novos medicamentos (Trouiller et al., 2002). Diante desse cenário, a DNDi foi fundada por uma parceria supranacional firmada entre a MSF e outras seis instituições — a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Brasil, o Conselho Indiano de Pesquisa Médica (ICMR), o Instituto Queniano de Pesquisa Médica (KEMRI), o Ministério da Saúde da Malásia, o Instituto Pasteur, da França, e o Programa Especial para Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais da Organização Mundial da Saúde (WHO-TDR).

Origem: as Parcerias de Desenvolvimento de Produtos (PDPs)

Em 2001, a MSF publicou um relatório de alto impacto na comunidade de saúde intitulado Fatal Imbalance: The Crisis in Research and Development for Drugs for Neglected Diseases, demonstrando sua preocupação com a escassez de medicamentos para doenças negligenciadas. Segundo a MSF, o modelo vigente de pesquisa e desenvolvimento (P&D) mobilizava muitos recursos para os tratamentos de doenças que afetavam países de alta renda, potencialmente lucrativos, enquanto destinava poucos para aquelas predominantes em países de baixa e média renda.

Esse relatório se insere em um contexto de debates em vigor desde a década de 1990, os quais resultaram em um movimento para a criação de novos modelos de P&D voltados a suprir as lacunas apontadas na saúde global. Desse processo surgem as Parcerias de Desenvolvimento de Produtos (PDP, do inglês Product Development Partnership), criadas quase todas no início dos anos 2000, entre as quais a DNDi. 

As PDPs são organizações sem fins lucrativos financiadas por recursos públicos, privados, acadêmicos e filantrópicos. Elas têm sido cruciais para aumentar o esforço de P&D para preencher lacunas de inovação no setor farmacêutico, incluindo as doenças negligenciadas (Tuttle, 2016; Davis et al., 2021)

A maior parte das PDPs dedica-se a doenças “tipo 2”, conhecidas como doenças negligenciadas, que incluem as "três grandes" — HIV/AIDS, a tuberculose e a malária, que ocorrem no Norte e no Sul Global, ainda que sejam endêmicas somente no mundo em desenvolvimento (Bhatla, 2019). O diferencial da DNDi é que, apesar de atuar nesse nicho, também direciona esforços para as doenças do “tipo 3” (ou mais negligenciadas), posteriormente definidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como doenças tropicais negligenciadas (DTNs), praticamente só encontradas no Sul Global, tais como doenças de Chagas e leishmaniose, para as quais os incentivos de mercado para o seu enfrentamento sãos praticamente nulos. De acordo com Tuttle (2016), considerando que não há outra PDP especificamente focada em DTNs, a atuação da DNDi torna-se particularmente significativa. 

Atuação da DNDi

Os propósitos que regem a iniciativa são estimular a P&D de medicamentos, vacinas e diagnósticos e promover a produção de tratamentos já existentes para doenças negligenciadas, buscando equidade na sua produção, distribuição e no seu acesso. A organização também advoga pelas causas em que atua, defendendo que recursos e atividades de P&D devem ser guiados pelas necessidades de saúde pública, e que as normas para tais iniciativas devem ser acordadas globalmente (Chatelain e Loset, 2011). A transparência na divulgação dos custos de P&D também é questão central para a iniciativa.

A DNDi busca ainda fortalecer as capacidades produtivas nos países onde atua, criando projetos colaborativos com universidades, institutos de pesquisa, hospitais e empresas farmacêuticas. Tais parcerias também envolvem grandes multinacionais farmacêuticas, que apesar da baixa (ou nula) lucratividade, atuam em colaboração com a DNDi e demais atores pelos benefícios não financeiros envolvidos: “obrigação moral” gerada ao longo dos anos pela pressão pública (Tuttle, 2016), consequente melhoria de reputação, aumento de redes de cooperação,  fortalecimento de competências no desenvolvimento/registro de tratamentos inovadores e  expansão da atuação em novos mercados (Moser et al., 2023).

Até 2023, a iniciativa alcançou 12 tratamentos destinados a seis doenças, incluindo o desenvolvimento de duas novas entidades químicas inovadoras — o fexinidazol, primeiro tratamento oral para a doença do sono, e o ravidasvir, medicamento inovador para a hepatite C —, e 10 tratamentos a partir de moléculas já existentes. A meta estabelecida pela iniciativa é ter em seu portfólio 25 medicamentos até 2028, quando completa 25 anos.

No Brasil, diversas instituições atuaram e ainda atuam em projetos coordenados pela DNDi, incluindo laboratórios públicos (Farmanguinhos/Fiocruz e Lafepe), universidades e empresas. Esses projetos direcionam-se aos tratamentos da leishmaniose, malária (ASMQ), Chagas (Benznidazol, Fenarimol) e, mais recentemente, pesquisas para dengue.

Recursos 

Buscando não comprometer sua independência, nenhum doador pode contribuir com mais de 25% do orçamento total da DNDi. Desde a sua fundação, cerca de 60% dos recursos que financiam suas atividades provêm de fontes públicas, 12% vêm da organização MSF e os demais 28% são procedentes de doações privadas, sobretudo de fundações filantrópicas. (DNDi, 2023).

Em relação ao montante investido especificamente em projetos de P&D, o Gráfico 1 mostra valores crescentes ano a ano em termos reais (com exceção de 2018). Se em 2012 tais investimentos alcançaram € 22 milhões, dez anos depois esse montante chegou a €47,7 milhões.

Gráfico 1 PD

Apesar dessa diversificação de fontes, Borrás (2017) ressaltou que um número crescente de doadores tem demandado a decisão sobre quais projetos querem financiar, condicionando a disponibilização dos recursos ofertados às suas prioridades. Entretanto, a decisão sobre a progressão destes projetos permanece com a DNDi.

Governança

A DNDi possui um Conselho de Administração que aprova a seleção de projetos e estabelece políticas relacionadas à propriedade intelectual, ao controle financeiro e à ética. Entre seus integrantes estão representantes das instituições fundadoras, dos pacientes e de membros capazes de contribuir com o processo decisório. 

A estrutura de governança também é composta pelo Comitê Científico e pelo Comitê de Acesso. O primeiro é composto por cientistas especializados no desenvolvimento de medicamentos, em medicina e em saúde pública e, com atuação independente, faz recomendações ao Conselho de Administração. O segundo, criado em 2021, é formado por pessoas com experiência nas áreas de logística, antropologia, economia da saúde e saúde pública, e tem como finalidade aconselhar os tomadores de decisão em tópicos relacionados à garantia de acessibilidade dos medicamentos. 

Modelo de P&D

A DNDi não possui laboratórios próprios. Seu papel é o de "condutora", intermediando os atores envolvidos nas diversas etapas de atuação. Existem diferentes projetos para cada fase de desenvolvimento de medicamentos para uma determinada doença – entre estas fases estão a descoberta de alvos terapêuticos, screening, melhoria dos componentes ativos etc. O conjunto de projetos relacionados a uma determinada doença compõe seu portfólio (Barbeitas, 2019).

A atuação da DNDi está dividida em cinco categorias: novos candidatos a medicamentos; novas moléculas; novas indicações para medicamentos já existentes; novas formulações e combinações de medicamentos já existentes; e medicamentos existentes para doenças-alvo (por exemplo, extensão geográfica de registro). 

Sua atuação engloba todas as etapas convencionais de P&D, iniciando no processo de descobertas, passando pela triagem e otimização de compostos promissores. Em seguida, tem início a tradução das descobertas em aplicações práticas. Esses compostos inicialmente passam por estudos pré-clínicos para avaliar o grau de tolerabilidade e toxicidade de cada dosagem, bem como sua reação com outras substâncias. Em seguida, os pesquisadores testam esses potenciais medicamentos em humanos (Fases I e II) para verificar sua eficácia e segurança. Os produtos remanescentes passam por exames clínicos adicionais, em maior escala (Fase III). A última etapa consiste no registro e na promoção do acesso dos tratamentos desenvolvidos. 

Mesmo após o registro, os testes clínicos continuam (em menor escala), com o objetivo de produzir dados adicionais (Fase IV). Uma vez registrado, a iniciativa também precisa assegurar preços acessíveis para os tratamentos, sem impedir a viabilidade econômica para seus parceiros industriais (Boulet, 2021).

As diferentes categorias de medicamentos, assim como suas etapas de desenvolvimento, demandam custos variados, os quais estão apresentados na publicação 15 years of needs-driven innovation for access. O custo médio do desenvolvimento e registro de novos tratamentos que combinam ou reformulam medicamentos existentes foi estimado em €4 a 32 milhões, ao passo que o de novas entidades químicas em €60 a 190 milhões. 

Esses valores, significativamente menores do que os estimados no desenvolvimento de medicamentos por meio de mecanismos tradicionais de mercado (DiMasi, 2020), levam em conta algumas vantagens desse modelo, como o tamanho dos testes clínicos e as exigências regulatórias, que são menores no caso de doenças para as quais ainda não há tratamento, além da não remuneração dos custos de capital no caso de PDPs como a DNDi.

Propriedade Intelectual

De acordo com as diretrizes de Propriedade Intelectual (PI) e com a política de acesso, a DNDi promove todos os esforços para garantir que os resultados de seu trabalho sejam colocados e permaneçam em domínio público, sendo disseminados por meio de publicações, apresentações e outros canais. Os termos de licenciamento definidos como “padrão ouro” pela iniciativa incluem licenças perpétuas, livres de royalties, não exclusivas e sublicenciáveis; direitos de pesquisa e fabricação em âmbito internacional; disponibilização do produto final pelo custo básico adicionado somente de margem mínima; transferência de tecnologia e fortalecimento dos produtores locais.

No entanto, a abordagem da DNDi em relação a essa questão é pragmática, e a promoção de sua missão institucional pode, por razões diversas, exigir que os resultados de seus esforços sejam protegidos por direitos de PI. Embora constitua uma exceção, em casos específicos o patenteamento de suas inovações pode, por exemplo, fortalecer a capacidade de negociação com parceiros. 

Se um direito de PI for de titularidade da DNDi, ela terá a liberdade de usá-lo e compartilhá-lo como desejar. Se a propriedade pertencer a um parceiro, a DNDi precisará obter esse direito por meio de licenças e insistirá em compromissos adicionais a serem assumidos pelo parceiro para garantir acesso equitativo e possibilitar pesquisas adicionais, além da parceria vigente. 

A DNDi não aceita projetos nos quais a PI possa reduzir sua atuação, tornando-se uma barreira para suas pesquisas subsequentes. Para isso, negocia seus termos com parceiros para garantir que a PI envolvida nos acordos não seja usada de maneira que impeça o acesso aos resultados das pesquisas ou que dificulte pesquisas adicionais por ela própria ou por outros parceiros (Moser et al., 2023). 

A exceção às licenças isentas de royalties, como são geralmente concedidas à DNDi, ocorreu no acordo para o desenvolvimento do ravidasvir. Esse incluiu, pela primeira vez na história da iniciativa, o pagamento de royalties à empresa Presidio Pharmaceuticals nos países em que esta detém patentes relacionadas ao produto. 

A importância do medicamento justificou a exceção: desenvolvido em parceria com empresas do Egito (Pharco) e da Malásia (Pharmaniaga), foi a primeira vez que a DNDi se candidatou ao registro de uma nova entidade química sem associação a uma grande empresa farmacêutica sediada em países desenvolvidos. A inovação já tem desdobramentos no Brasil: em julho de 2023, a Fiocruz assinou um acordo de parceria técnico-científica com a DNDi e a Pharco para solicitar o registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), visando disponibilizá-lo no Sistema Único de Saúde (SUS).

Pontos fortes e desafios

A DNDi destaca-se entre as PDPs, entre outras razões, pelo direcionamento de esforços para “as negligenciadas entre as doenças negligenciadas”, as DTNs. Para Tuttle (2016) seus pontos fortes são a independência da organização, mantida pela diversidade de fontes de financiamento; o comprometimento com a construção de capacitações de P&D em países de menor renda; a orientação das decisões a partir dos interesses dos pacientes; o custo relativamente baixo dos projetos; a transparência nas informações, incluindo custos de P&D e, no geral, as diretrizes de PI. Entre os desafios futuros, a autora enfatizou a sustentabilidade do modelo a longo prazo, incluindo possíveis limitações financeiras.

* Este artigo faz parte de uma série sobre precificação e acessibilidade de medicamentos a partir da visão e da atuação de instituições internacionais.

** Este trabalho foi financiado pelo Ministério da Saúde por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) n. 06, de 2022.