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Brasil ainda importa 90% da matéria-prima necessária para a produção de vacinas
Dificuldade que o Brasil enfrenta para produzir seus próprios imunizantes esbarra em vários fatores
Publicado em 02/05/2024 - Última modificação em 08/05/2024 às 16h15
Um relatório publicado recentemente pela organização internacional Oxfam destacou a falta de autossuficiência do Brasil na produção de vacinas. De acordo com o documento, o país importa 90% da matéria-prima necessária para a fabricação de imunizantes e medicamentos; já segundo a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), essa dependência chegaria a 95%, dado que o país domina apenas algumas etapas do processo de produção desses compostos.
A dificuldade que o Brasil enfrenta para produzir seus próprios imunizantes esbarra em vários fatores. Há anos o país lida com a instabilidade no financiamento de sua estrutura de ciência, tecnologia e inovação (CT&I). Desde 2013 o dispêndio nacional em pesquisa e desenvolvimento (P&D) vem diminuindo em valores absolutos. Em 2017, chegou a R$ 41,2 bilhões, o menor patamar desde 2012, segundo o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).
O próprio MCTI teve em 2020 o menor orçamento em mais de uma década — excluindo salários e despesas obrigatórias, sobraram R$ 3,7 bilhões para investimentos, 30% a menos que em 2019, em valores reais. É bem verdade que em 2024 o orçamento voltou a subir, para R$ 9,2 bilhões, mas ainda está em um patamar inferior aos valores de 2014.
As dificuldades financeiras são apenas parte dos gargalos enfrentados pelo Brasil nessa seara. O problema também esbarra na baixa articulação entre a academia e a indústria, e de estímulo à inovação. As multinacionais fabricantes de vacinas não têm interesse em se instalar no país e as poucas empresas privadas desse tipo por aqui não se sentem compelidas a inovar nessa área.
Dados da Pesquisa de Inovação Semestral (PINTEC) indicam que 34,4% das empresas industriais com 100 ou mais pessoas realizaram dispêndios em atividades internas de P&D em 2022, percentual marginalmente superior ao observado em 2021, onde 33,9% das empresas industriais investiram em atividades internas de P&D.
Mesmo o desenvolvimento e a produção de medicamentos no país esbarram na escassez de empresas farmoquímicas, fundamentais para a produção de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), principal insumo das vacinas.
O Brasil chegou a produzir 55% de sua demanda para a fabricação local de medicamentos nos anos 1980. Hoje, esse número é de 5%. A contração coincide com a abertura da economia brasileira nos anos 1990. A redução das tarifas aduaneiras barateou o preço, no Brasil, dos produtos importados, inviabilizando os negócios das empresas nacionais, que não conseguiram competir e faliram.
Empresas e associações apontam alguns empecilhos para expandir a produção nacional, tais como regulamentação imprecisa, dificuldade no acesso a financiamento público, diferenças que favorecem produtos estrangeiros no pagamento de impostos e burocracia, taxa cambial, padrões sanitários rígidos e fiscalização insuficiente.
A reclamação geral, segundo o relatório da Oxfam, é que as constantes mudanças de diretrizes geram insegurança jurídica para o estabelecimento de novos projetos, principalmente em uma indústria na qual novos empreendimentos demoram anos para ser idealizados e regulamentados.
Tudo isso fez com que o Brasil passasse a depender cada vez mais de insumos estrangeiros. Enquanto a China tem mais de mil fábricas produtoras de IFA, no Brasil, esse número é de 15, com apenas duas instituições produzindo a maioria das vacinas: a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, e o Instituto Butantã, em São Paulo. A indústria farmacêutica também foi prejudicada, mas conseguiu se reerguer com a lei dos genéricos.
A partir dos anos 2000, diferentes propostas de política industrial foram apresentadas para tentar reverter o quadro de desindustrialização e incluíram entre seus alvos o setor farmacêutico nacional. A dependência da importação de IFA e medicamentos, refletida em uma balança comercial deficitária para o setor, sustentou o argumento da vulnerabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) no que se refere aos altos preços e ao fornecimento de tecnologias em saúde. Isso levou à adoção de uma série de instrumentos para incentivar a produção de insumos e produtos acabados em território nacional.
Entre eles estão as chamadas Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDP), as quais buscam impulsionar transferências de tecnologia entre entes privados para os Laboratórios Farmacêuticos Oficiais (LFO) e também estimular a produção de IFA em território nacional.
Testes pré-clínicos
As dificuldades para obter fármacos e imunizantes se apresentam nos primeiros estágios de desenvolvimento. Tudo caminha bem nas fases de teste in vitro dentro das universidades, as menos custosas do processo. As barreiras aparecem quando a pesquisa avança para os testes em animais. Essa etapa é feita em laboratórios com pessoal especializado em manejo e experimentação animal, e instalações de elevado grau de exigência, sobretudo em biossegurança e bioética. Ela também demanda a produção de lotes do imunizante em escala-piloto. O objetivo é avaliar como o composto é metabolizado pelo organismo animal e se é seguro e eficaz para ser aplicado em humanos.
O problema é que poucas instituições contam com esse tipo de infraestrutura no Brasil. Recorre-se muitas vezes a centros no exterior, que produzem as doses e as testam em animais, mas a altos custos.
A escassez de centros privados no Brasil se deve à baixa demanda por testes pré-clínicos em animais. É custoso abrir e manter laboratórios assim. Como a demanda por esse serviço é baixa no país, o investimento se torna muito arriscado. A história do Centro de Inovação e Ensaios Pré-clínicos (CIEnP), em Santa Catarina, ilustra bem um dos principais problemas do país em relação ao desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas: a falta de previsibilidade de recursos governamentais para projetos estratégicos.
Único centro privado desse tipo no país, o CIEnP nasceu com o apoio de recursos públicos para atender a uma demanda específica em fins dos anos 2000. O governo havia, então, investido na indústria farmacêutica por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o que gerou uma alta procura por testes pré-clínicos em animais, e estimulou a criação de um centro que realizasse esses testes no Brasil, com apoio do Ministério da Saúde e do MCTI e da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc).
O CIEnP foi inaugurado em 2014. No entanto, as crises econômicas e as trocas no governo levaram a uma mudança de política. Os recursos escassearam e a demanda por esses testes diminuiu drasticamente. O centro hoje está quase ocioso.
O Brasil também tem experiência restrita em ensaios clínicos de fase 1 e 2 em pequenos grupos de seres humanos. Esses testes demandam alto grau de investimento e costumam ser coordenados por grandes empresas farmacêuticas sediadas nos países em que a tecnologia foi desenvolvida.
Setor industrial da saúde
Diversos países lançaram planos de recuperação de seus sistemas nacionais de saúde após a pandemia, entre esses os Estados Unidos, que anunciaram um esforço para produzir moléculas consideradas estratégicas nos próximos anos. O país também criou uma agência, a Arpa-H, para coordenar os esforços de pesquisa no setor. Com a proposta de dinamizar o financiamento de projetos, a agência conta com orçamento de US$ 2,5 bilhões (aproximadamente R$ 12,5 bilhões). Outros países de renda alta como Reino Unido, Espanha, Alemanha, França, Nova Zelândia, Itália e Coreia do Sul, bem como alguns países de renda média, como Vietnã, também desenvolveram planos de longo prazo para o setor industrial da saúde. De acordo com o relatório da Oxfam, o mercado de IFA no mundo deve crescer por volta de 6,67% entre 2022 e 2028, recebendo investimento de US$ 312 bilhões. A Abiquifi estima que o crescimento do mercado mundial será de aproximadamente US$ 200 bilhões até 2025.
Ainda em 2020, a Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (ABIFINA), a Abiquifi, a Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais (Alanac) e o Grupo FarmaBrasil elaboraram uma proposta para o governo brasileiro que previa, entre outras coisas, a verticalização da cadeia produtiva brasileira a partir da aproximação entre a indústria petroquímica e a de química de base.
As associações também elaboraram uma série de eixos de atenção, tais como apontar a produção de IFA como uma questão de segurança nacional, debates em torno da propriedade intelectual de insumos e produtos, além do uso de poder de compra público. À época, o MCTI criou o grupo GT-Farma com a proposta de discutir o desenvolvimento do setor com membros do ministério, cientistas e representantes da sociedade civil.
O grupo de trabalho em si não trouxe muitos resultados, mas algumas de suas recomendações permanecem, como a instituição de um mecanismo de fast track na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), além da adoção de inspeções semelhantes para produtores estrangeiros e nacionais — muito pouco para as necessidades do país.
Recentemente, o governo lançou o programa Nova Indústria Brasil, com o objetivo de impulsionar a indústria nacional até 2033. A iniciativa usa instrumentos tradicionais de políticas públicas, como subsídios, empréstimos com juros reduzidos e ampliação de investimentos federais, além de incentivos tributários e fundos especiais para estimular alguns setores da economia.
Um dos objetivos da nova política é fortalecer o complexo econômico e industrial da saúde, de modo a atingir 70% das necessidades nacionais na produção de medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos, materiais e outros insumos e tecnologias em saúde. Meses antes, o governo já havia assinado um decreto instituindo a Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), com R$ 42 bilhões para seis programas estruturantes, segundo ele, é expandir a produção nacional de itens prioritários, como o IFA, para o Sistema Único de Saúde (SUS) e reduzir a dependência externa.