Livro do Ano - Educação |
2006. Ano 3 . Edição 27 - 5/10/2006 Depois de garantir que todas as crianças entrem na escola, o Brasil agora enfrenta o enorme desafio de melhorar a qualidade da educação. Nossos estudantes, em qualquer série, apresentam desempenho que equivale ao de um aluno europeu com cinco anos menos de estudo. Além disso, daqueles que se matriculam no primeiro ano, apenas 57% concluem o ensino fundamental porque muitos abandonam o colégio por desânimo ou para trabalhar Por Lia Vasconcelos, de Brasília
O quadro apresentado a seguir não é nenhuma surpresa, faz parte da velha e conhecida lista de mazelas sociais brasileiras. Mas não é porque não venha encoberta com o frescor da novidade que a discussão sobre a qualidade da educação básica seja menos importante. Ao contrário, é assunto dos mais urgentes. Para começar, o Brasil ainda conta com um grande contingente de analfabetos. A recém-divulgada Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2005, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que 10, 9% dos brasileiros com mais de 15 anos não sabem ler nem escrever. Em 2002, essa taxa era de 11, 8%, totalizando 14, 8 milhões de analfabetos. Portanto, em três anos, apenas 213 mil pessoas tiveram a chance de se alfabetizar. Só para ficar na América Latina, a taxa de analfabetismo na Argentina era de 2, 8% em 2001, e no Chile, 4, 3% em 2002. Outro aspecto particularmente importante é que, apesar de virtualmente todas as crianças com sete anos entrarem na escola, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), somente 84% concluem a 4. ª série e 57% terminam o ensino fundamental. O funil estreita-se mais ainda no nível médio: apenas 37% dos que ingressaram no ensino fundamental conseguem concluir a próxima etapa. A escolaridade média do brasileiro, que era de 6, 8 anos de estudo em 2004, permanece abaixo da escolaridade obrigatória no país (leia tabela Média de anos de estudo segundo grupos de idade). Em qualquer série, um jovem brasileiro tem um nível de competências educativas que corresponde aproximadamente ao de um europeu médio com cinco anos a menos de estudo. O fato de todas as crianças entrarem na escola é, sem dúvida, uma grande conquista, mas é só o primeiro passo. Agora é preciso investir incansavelmente em qualidade, o que inclui aperfeiçoamento dos professores, melhoria da infra-estrutura e motivação dos profissionais envolvidos. Ter boas escolas não é só uma urgência social, mas também econômica, já que um diploma de ensino médio permite que os rendimentos médios dessa força de trabalho sejam o dobro dos que não têm escolaridade. E o ensino superior quase triplica esse rendimento, comparado com o médio. Essa discussão está no capítulo dedicado à educação da publicação Brasil:O Estado de uma Nação, recentemente lançada pelo Ipea. Em 2005, 10,9% dos brasileiros com mais de 15 anos não sabiam ler nem escrever. Na Argentina, a taxa de analfabetismo, quatro anos antes, era de 2,8%, e no Chile, 4,3% Para muitos, o problema começou lá atrás. Mais sério do que os erros do presente, segundo Cláudio Moura e Castro, presidente da rede de ensino Pitágoras e coordenadordo capítulo, foi o que deixou de ser feito durante os primeiros quatro séculos de vida do país. Se na Europa a escola se difundiu rapidamente a partir do século XVIII e quase todos os países do continente conseguiram universalizar o acesso à educação ainda no século XIX ou no início do século XX, no Brasil a história foi bem diferente. Em meados do século XVIII, cerca de apenas um em cada 10 mil brasileiros freqüentava a escola, e em torno de 70% da população era analfabeta em 1900. As razões por trás disso são fáceis de entender. Nessa época, aproximadamente dois terços da população de Portugal também era analfabeta. O cenário estava pronto, pois o Brasil não herdou de seu colonizador uma tradição educativa. “O grande problema não é o que fazemos de errado, mas o que não fizemos por quatro séculos. Só há cinqüenta anos as coisas começaram a acontecer e aí tudo foi feito na correria, às pressas”, diz Moura e Castro. Segundo ele, o crescimento que se deu depois de 1950 foi impressionante, mas não conseguiu recuperar esse atraso acumulado.
Herança Se no passado a maior dificuldade era resolver a questão do acesso, hoje os grandes desafios são qualitativos. Em 2004, apenas três estados do Norte - Pará, Roraima e Acre - apresentavam taxas de escolarização inferiores a 95%, ainda que acima de 92%. Na opinião de Moura e Castro, os motores fundamentais da mudança foram a abertura e a modernização da economia, fatores que geraram uma vigorosa demanda por trabalhadores mais instruídos. Já para o pesquisador do Ipea Jorge Abrahão o que contou fortemente foram a redemocratização, a descentralização da gestão da educação e novas fontes de financiamento, como a vinculação de recursos para a educação surgida em 1983 e sacramentada na Constituição de 1988. Um dos obstáculos mais urgentes que o sistema de ensino brasileiro precisa superar é a questão da eqüidade, ou melhor, da falta dela. Dados do Ipea mostram que para os mais pobres a experiência escolar é uma imersão num mundo desconhecido e difícil porque nem os alunos de classes mais baixas, nem muitas vezes suas famílias têm intimidade com livros e com a língua escrita. Além disso, seu vocabulário é menor.
O processo desencadeado daí já é velho conhecido: as notas fracas elevam a probabilidade de reprovação e acabam atrasando a trajetória escolar, aumentando o desvio série/idade, problema bastante característico do ensino no Brasil. O abandono vai começando aos poucos e acentuase ao longo do tempo. Por exemplo, em 2004 a evasão na 4ª série era de 7, 4% e na 8ª série passou para 14, 4%. Aos 14 anos, muitos jovens começam a trabalhar e precisam dividir o tempo entre o estudo e o emprego. Nesse cabo de guerra, a escola quase sempre sai perdendo. Para manter as crianças estudando, é preciso, de acordo com Candido Alberto da Costa Gomes, professor da área de educação da Universidade Católica de Brasília (UCB), que as escolas respondam às necessidades dos alunos. “É importante ter brincadeiras, jogos, lazer, cultura, esporte e não letras mortas para copiar continuamente do quadronegro. Para tanto, não é preciso uma revolução tecnológica. As coisas simples são as melhores e mais efetivas”, acredita. Sobrevivência
A realidade, entretanto, não é bem essa. Basta examinar os resultados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), exame bienal aplicado pelo MEC que testa os conhecimentos em matemática e português (leitura) dos estudantes de 4. ª e 8. ª séries do ensino fundamental e de 3. ª série do ensino médio. Os alunos brasileiros sabem muito pouco. Na prova de leitura de 2003, a média geral dos estudantes da 4. ª série do ensino fundamental foi 169, 4, numa escala única que vai até 500 pontos para todas as séries (leia tabela acima Notas médias no exame do Saeb). Para ter uma idéia, nesse patamar de desempenho os alunos localizam informações explícitas em textos narrativos mais longos e em anúncios de classificados e reconhecem o tema de um texto informativo mais simples. Mesmo com notas tão fracas, a média obtida em 2003 foi a primeira a superar a pontuação obtida no teste anterior, desde 1995, quando a metodologia passou a permitir comparações (leia quadro radiografia de um problema). Em 1995, a nota média foi 188, 3, que caiu para 186, 5 em 1997, 170, 7 em 1999 e chegou a 165, 1 em 2001. Os resultados de 2005 ainda não foram divulgados. Regiões Em relação a 2000, quando a avaliação também foi aplicada, os alunos brasileiros melhoraram ligeiramente em matemática e ciências. O dado mais alarmante é que a capacidade de compreensão de leitura dos alunos das classes mais altas brasileiras foi inferior ao nível obtido pelos alunos de classes mais baixas da Europa. O Brasil, apesar da sutil melhora, ainda teve o pior desempenho entre os participantes na prova de matemática. Na pontuação global, Hong Kong, Finlândia e Coréia do Sul tiveram o melhor desempenho. Brasil, Tunísia e Indonésia foram os piores colocados. “O desempenho do aluno depende da escola e de sua bagagem cultural, dos estímulos que recebe em casa. Como é muito mais difícil mudar as famílias, o caminho para melhorar é por meio das escolas”, acredita Reynaldo Fernandes, presidente do Inep. O abandono vai começando aos poucos e acentua-se ao longo do tempo. Em 2004, a evasão escolar na 4ª série era de 7,4% e na 8ª série passou para 14, 4% Como, então, alterar esse cenário? O Ipea reuniu um conjunto de propostas em um documento chamado “Agenda Ipea”. Em linhas gerais, o texto defende que seja formado um pacto em torno da educação. A sugestão é que o governo federal tome a iniciativa de elaborar o mais rápido possível - em conjunto com o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed), a União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e outras representações da sociedade civil - um Pacto Nacional pela Educação. Seria fundamental a fixação de metas claras e exeqüíveis. A idéia seria, portanto, atualizar, legitimar e monitorar as metas que estão expostas no Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2001. Entre outras coisas, o PNE previa que em 2005 o acesso ao ensino fundamental estivesse 100% universalizado, que até 2003 todos os formandos do ensino fundamental teriam vagas no médio e que, em 2006, 30% das crianças de até 3 anos seriam atendidas em creches. Nessa faixa etária, entretanto, apenas 13, 4% das crianças eram atendidas em 2004, segundo os dados mais recentes do Inep.
“Parece existir um consenso de que as escolas precisam ter qualidade. Por que, então, isso não é feito? Há problemas de articulação entre as esferas do governo e falta uma tomada de decisão política para colocar a educação na agenda do país”, diz Jorge Abrahão, pesquisador do Ipea. De acordo com ele, é preciso aperfeiçoar o regime de colaboração entre as esferas de governo, pois diferente de outras áreas, como saúde e assistência social, a educação não se constituiu como um sistema integrado. “ Um dos mecanismos para garantir a solidariedade entre os entes federados seria a criação de uma instância colegiada de decisão sobre políticas para a educação básica constituída pelo MEC, pelo Consed e pela Undime. É preciso definir e implementar agendas compartilhadas entre União, estados, municípios e Distrito Federal”, explica Abrahão. Otimização das ações do MEC, implementação de sistemática de monitoramento e avaliação de programas e ampliação da participação social também fazem parte da agenda formulada pelo Ipea. Além disso, o instituto acredita que é preciso haver uma reforma do padrão de financiamento e do gasto que passa pela aprovação, pelo Congresso Nacional, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). O Brasil deveria gastar 8,1% do PIB com educação, e não 4,3% Essa reforma garantiria um padrão mínimo de investimento por aluno, baseado em critérios de qualidade adequados e na ampliação de recursos para possibilitar o cumprimento das metas estipuladas pelo PNE. Em 2003, um grupo de trabalho do MEC construiu um cenário que previa melhoria progressiva no padrão de gasto/aluno para o período entre 2003 e 2011 e constatou- se que o Brasil deveria sair de um patamar de gastos de 4, 3% do Produto Interno Bruto (PIB), em 2003, para atingir, oito anos depois, 8, 1% do PIB em gastos com educação pública. Esse seria o investimento necessário para que o Brasil tivesse um verdadeiro choque de educação e ingressasse num novo patamar de desenvolvimento econômico e social. Atualmente, o gasto com educação continua na faixa dos 4%. “O PNE previa aumento do gasto com educação para 7% do PIB, mas esse artigo foi vetado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e havia a expectativa que o atual governo derrubasse esse veto, mas não foi o que aconteceu”, afirma Milton Alves Santos, assessor do programa Juventude da organização não-governamental Ação Educativa. Fazem parte ainda da agenda do Ipea a ampliação e a continuidade do recente processo de avaliação escolar, a melhoria da qualidade do ensino médio noturno, a expansão da atuação do MEC na área de educação infantil, a universalização progressiva da pré-escola, a começar pelas crianças de 5 anos e, em seguida, pelas de 4 anos, e o aperfeiçoamento dos programas de valorização e formação de professores da educação básica. Professores
Valorização Do total de recursos anuais do Fundeb, 60% devem ir para os professores (pagamento de salários e oferta de cursos de formação e qualificação) e 40% para a manutenção das escolas. “O problema e a solução hoje em dia estão no professor. A grande dificuldade a vencer é valorizar e formar os professores da escola básica”, diz Abrahão. O Censo Escolar de 2004 mostra que cerca de 17% das 835 mil funções docentes das últimas séries do ensino fundamental (de 5. ª a 8. ª) e 8% das quase 500 mil funções docentes do ensino médio são ocupadas por professores que não possuem escolaridade de nível superior, requisito obrigatório para o magistério nessas etapas. O Censo também aponta que o Brasil possui cerca de 30 mil professores das séries iniciais (de 1. ª a 4. ª) sem magistério de nível médio, qualificação também exigida por lei. Para tentar corrigir essas falhas, o MEC oferece programas como o Pró-Formação, cujo objetivo é formar professores de 1. ª a 4. ª série no nível médio. Hoje, aproximadamente 5 mil professores freqüentam cursos com duração de dois anos que envolvem atividades tanto presenciais como a distância. A meta é formar 10 mil professores até 2007. Outro programa é o Pró-Licenciatura, voltado para os professores de 5. ª a 8. ª série do ensino fundamental que não têm licenciatura. O curso, oferecido por universidades com autorização do Conselho Nacional de Educação (CNE), dura em média 3, 5 anos. A meta é atingir 60 mil professores neste ano e 90 mil em 2007.
Na opinião de Moura e Castro, se os mercados começam a exigir melhores qualificações e, ao mesmo tempo, a educação oferecida na escola é muito fraca, o resultado é a multiplicação dos programas de complementação escolar e formação profissional de todos os tipos, oferecidos por uma gama estonteante de provedores públicos e privados. “Há evidência suficiente para acreditar que é perfeitamente racional fazer cursos, pois trazem melhorias no salário, na mobilidade ou, quando nada, reduzem a probabilidade de ficar desempregado”, diz Moura e Castro. “No Brasil, o importante é ter diploma. Ele já coloca a pessoa em outro patamar de remuneração”, afirma Fernandes, do Inep. De acordo com o Ipea, os brasileiros começam a trabalhar muito cedo e param de estudar muito tarde. Aproximadamente, 50% dos que terminam a 8. ª série têm 16 anos ou mais e dividem a jornada entre trabalho e estudo. A média de idade no superior está acima de 25 anos, o que sugere que cerca de 37% dos estudantes só começam o superior dez anos ou mais depois da idade correta. E, como resultado do atraso dentro do ciclo acadêmico, há 7 milhões de alunos nos supletivos (EJA). Pelas mesmas razões, 58% dos alunos do superior estão em cursos noturnos. Para o coordenador do capítulo sobre educação do livro Brasil:O Estado de uma Nação, a adoção de processos mais complexos em algum ponto do processo produtivo influi profundamente nas necessidades de educação da força de trabalho. “O esforço brasileiro para garantir qualidade na educação básica significa também avanço no desenvolvimento do país”, acredita Fernandes, do MEC. Como bem resume Gomes, da UCB, “nenhum país chegou ao desenvolvimento sem, pelo menos, no século passado ou no antepassado, universalizar um ensino fundamental decente. Isso significa que a educação não é milagrosa, mas em nenhum momento pode estar alheia ao grande drama, que pode se tornar a tragédia da desocupação juvenil. Contentar-seá o Brasil com a periferia, a miséria, a exclusão endêmica porque sua população não terá preparo para que o país dispute um lugar ao sol? Esse lugar depende, em grande parte, da criação e do conhecimento”. |