Gestão Pública - Na conta certa |
2006. Ano 3 . Edição 28 - 8/11/2006 Estudos mostram que os municípios têm mantido a contabilidade nos parâmetros estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal - por disciplina ou aumento na arrecadação. Agora é tempo de melhorar o desempenho dos investimentos sociais Por Eliana Simonetti, de São Paulo
Santana dos Montes,no centro de Minas Gerais, reúne pouco mais de 3,8 mil habitantes,matas, cachoeiras e muito sossego.No dia 6 de outubro passado houve grande agitação nas calçadas.Todos comentavam o fato de Amadeu Gonçalves Ribeiro, prefeito entre 1997 e 2000, ter sido condenado por descumprimento à Lei de Responsabilidade Fiscal.Teve os direitos políticos suspensos por cinco anos e pagou multa de quase 20 mil reais por não ter quitado as dívidas de um convênio firmado com a Secretaria de Estado da Educação, o que impediu o município de acertar novos convênios. Não muito longe dali, na região serrana do Espírito Santo, o prefeito de Venda Nova do Imigrante, Braz Delpupo, foi denunciado pelo Ministério Público Estadual por improbidade administrativa. No dia 23 de outubro, a promotoria do município pediu seu afastamento, sob o argumento de que Delpupo ordenou despesas que infringem a Lei de Responsabilidade Fiscal, além de ter sido responsável por licitações,contratações e pagamento de despesas irregulares.Histórias assim começam a se tornar comuns no Brasil.No Acre, ao fechar 26 vagas de altos salários e demitir funcionários,o prefeito de Acrelândia,Vilceu Ferreira, explicou:" Eu não quero ser preso.A Lei de Responsabilidade Fiscal é minha bíblia". Passou-se de uma situação na qual as autoridades operavam sem instrumentos de política fiscal para outra em que há estatísticas regulares e confiáveis Antes da LRF, havia maior número de municípios que gastavam menos de 30% de sua receita com pessoal e encargos. Eles aumentaram suas despesas nessas rubricas Havia mais dinheiro em 2003 do que em 2004, mas investia-se menos em saúde e educação A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) está em vigor há pouco mais de seis anos. Quando foi promulgada, visava combater um problema que ganhou evidência com a estabilização econômica e a queda da inflação: gastos e endividamentos descontrolados de administrações municipais, estaduais e federal.Com o pressuposto de que ambientes com contas controladas e boa administração das dívidas apresentam melhores condições de desenvolvimento, foram estabelecidos limites e punições (veja quadro Conceitos úteis)."Os avanços da política fiscal foram extraordinários.Passou-se de uma situação na qual as autoridades operavam sem instrumentos - com estatísticas parciais e precárias, produzidas irregularmente, com grande defasagem e sujeitas a revisões significativas; e onde parte importante do gasto era realizado à margem da discussão do orçamento - para outra onde os 'botões' a serem apertados para um ajuste estão muito bem identificados; e as estatísticas são regulares,abrangentes e fidedignas", diz Fabio Giambiagi, economista do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no artigo "Programação Fiscal: sugestões para o médio prazo". A adequação das despesas à receita é apenas uma das faces da lei.Outra é a disciplina em tempos de campanha política.Desde sua edição, nos seis meses que antecequedem o término da legislatura ou do mandato do chefe do executivo, não pode haver ato que resulte em aumento de gastos ou contrato de operação de crédito.Uma terceira face é a da gestão eficaz dos recursos disponíveis - prática pouco comum num Brasil acostumado durante décadas à correção monetária, que escamoteava desperdícios e malversações.Para satisfazer as exigências da LRF, os administradores municipais tiveram de mudar de comportamento, aprender a cuidar das finanças de forma planejada,dispor de controles apurados, fazer previsões e acompanhá- las. O trabalho "Lei de Responsabilidade Fiscal e Finanças Públicas: impactos sobre despesas com pessoal e endividamento", elaborado por Dea Guerra Fioravante, Maurício Mota Saboya Pinheiro e Roberta da Silva Vieira,pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), constata que os municípios brasileiros têm obedecido aos limites estabelecidos pela norma legal - o que é bom em termos contábeis. Suscita, entretanto, algumas questões.Elas dizem respeito à qualidade dos serviços públicos ou às vantagens obtidas pelos cidadãos após a aprovação da lei, que não traz diretriz de cunho social ou a possibilidade de adoção de políticas compensatórias."A Lei de Responsabilidade Fiscal colabora para o ajuste das contas públicas, sem o qual não haverá condições de ultrapassarmos nossas dificuldades. No entanto, o equilíbrio fiscal é condição necessária, porém não suficiente, para alcançar o desenvolvimento.Não podemos esquecer o que são, de fato,mudanças profundas,sobretudo na educação e no bem-estar social",afirma Marcos Antônio Rios da Lóbrega, do Tribunal de Contas de Pernambuco. Calibragem Ao comparar a situação dos municípios brasileiros antes da promulgação da lei (de 1998 a 2000), e nos anos subseqüentes (entre 2001 e 2004),os pesquisadores do Ipea constatam que,no ano 2000,a maior parte se enquadrava nos padrões exigidos.Nos 5.212 municípios observados no estudo,a média de despesa de pessoal dividida pela receita corrente líquida era de 42,6% de 1998 a 2000.A queda foi irrisória depois que a LRF entrou em vigor: ficou em 42% entre 2001 a 2004.
"Há indícios de que o limite legal tomou como base a realidade fiscal na época de formulação da lei", afirmam os pesquisadores. Eles notam,no entanto,que antes de 2000 grande parte dos municípios do Rio Grande do Sul, Acre, Rondônia e Amazonas comprometiam de 44% a 60% de sua receita corrente líquida no pagamento de funcionários e que, em alguns, o índice de comprometimento ultrapassava 60% - o que praticamente desapareceu após a promulgação da lei.Como se explica que,mesmo tendo se ajustado à LRF, muitos municípios tenham registrado pequena queda na média de gastos? O fenômeno interessante é o seguinte: no período anterior à vigência da lei, havia maior número de municípios que gastavam menos de 30% de sua receita com pessoal e encargos, e eles aumentaram suas despesas nessas rubricas depois que o limite foi estabelecido num valor que era o dobro do que dispendiam.Os pesquisadores denominam esse movimento de "efeito manada", que é de estranhar, considerando a diversidade de demandas das regiões.
Qualidade Como se vê, as conseqüências da LRF não são simples nem diretas.Uma delas é que poucas cidades passaram a concentrar um grande volume de dívida. Antes de 2000,quarenta municípios estavam acima dos limites estabelecidos na LRF. O número caiu para doze em 2004. A capital paulista,quarta maior cidade do planeta, é responsável por 49,76% do total. Como diz Roberta da Silva Vieira, "após a lei,municípios que gastavam muito pouco, aumentaram suas despesas. Muitos dos que estouravam as cotas de gasto de pessoal e de endividamento se ajustaram. E os que não o fizeram passaram a ter um peso maior no total da dívida - o que resultou em concentração e acentuação das desigualdades". Outro efeito colateral diz respeito ao tipo de gasto realizado pelas municipalidades. O texto "Desmistificando o debate fiscal: o equívoco de confundir gasto social com custeio da máquina", divulgado em julho pela Secretaria de Assuntos Econômicos do BNDES, fala sobre o passo que será preciso dar após o ajuste das contas: o aumento da eficiência do investimento social."Assume-se que só as despesas com investimentos beneficiam a população e que outras rubricas de gastos correntes servem apenas para manter a máquina e não representam benefícios à sociedade. No entanto, as despesas correntes com previdência, educação e combate à pobreza, agrupadas como 'Gastos Correntes Finalísticos', têm indiscutivelmente função social fundamental".E conclui: "Deve-se evitar que, em nome do combate aos gastos da máquina pública, sejam reduzidas políticas sociais eficazes para a redução das desigualdades". Como forma de estimular a cultura da responsabilidade fiscal entre as prefeituras brasileiras, introduzindo temas que a LRF não contempla, como o desempenho social e a gestão eficiente, a Confederação Nacional de Municípios (CNM), em colaboração com Luis Roque Klering,professor da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), criou o Índice de Responsabilidade Fiscal,de Gestão e Social (IRFGS). O desempenho social é estabelecido com base em indicadores de saúde e educação, considerando volume de recursos mobilizados e resultados em termos de atendimento à população. Com a aplicação da metodologia,descobriu-se que em 2003 os municípios estavam menos endividados, com mais suficiência de caixa, gastavam menos com pessoal, Legislativo e custeio da máquina administrativa do que em 2004. Mas investiam menos em saúde, saneamento e educação. Rio Grande do Sul, São Paulo e Santa Catarina têm 72% dos municípios que estão no ranking dos cem melhores IRFGS.Os municípios gaúchos se destacam na área fiscal; os paulistas na social; e os catarinenses na eficiência de gestão. Compatibilidade Poços de Caldas, em Minas Gerais, alcançou a melhor nota em matéria fiscal.No critério social, obteve índice pior que o de 3.690 cidades. Entre os dez mais bem posicionados no ranking fiscal,metade não figura entre os 3 mil primeiros da responsabilidade social.A lista dos dez melhores no critério social é encabeçada por Monteiro Lobato, em São Paulo,que gastou 49% da receita corrente em educação e 35% em saúde, mas saiuse mal em termos fiscais: sua despesa com pessoal representa 71,4% da receita (veja tabela Administrações campeãs em 2004)."O sucesso fiscal muitas vezes ocorre à custa da área social. É preciso resgatar uma atuação mais harmoniosa", diz o presidente da CNM, Paulo Ziulkosky,defensor da idéia de criação de uma lei que estabeleça metas de responsabilidade social para as administrações públicas.
Durante muito tempo o governo interveio fortemente na economia, como planejador, executor, fiscalizador e controlador de preços e tarifas. Como atuava praticamente em todos os setores, era difícil aferir fontes e usos de recursos, o que contribuía para aumentar a probabilidade de surgimento de débitos não contabilizados. Esse é um problema ultrapassado. Hoje a contabilidade é clara e há maior equilíbrio entre as colunas de receita e despesa. Segundo dados do Banco Central, 94% dos municípios brasileiros encontram- se dentro dos limites estabelecidos para gastos com o funcionalismo público; 58% registram superávit orçamentário; 38% apresentam dívida bancária nula; 70% realizam investimentos com recursos próprios; e os investimentos em educação (22%) e saúde (27%) somam quase a metade da receita média total. A observação da realidade revela exemplos de administrações que conseguem cuidar bem da contabilidade e, ao mesmo tempo, atender às necessidades da população.
A prefeitura de João Pessoa, capital paraibana, tem uma Secretaria da Transparência Pública encarregada de fiscalizar e divulgar informações sobre os gastos.As prioridades contidas no Orçamento são definidas em reuniões populares que ocorrem em catorze regiões da cidade. Para 2007,entre outras obras, está prevista a construção de unidades de saúde da família e de um centro de referência em educação infantil na 13ª região, que abrange quatro bairros e sete comunidades."Muita gente passou anos lutando para que o poder saísse dos gabinetes.Agora, os recursos públicos estão sendo aplicados conforme as diretrizes populares", diz o prefeito Ricardo Coutinho (PSB/PB). Fátima de Souza Freire, professora da Universidade Federal do Ceará, é autora de uma análise sobre as finanças dos municípios cearenses e seus investimentos sociais. Descobriu que todos obedecem aos limites legais de endividamento e de gasto com pessoal. Investem, em média,39% de sua receita líquida em educação e 24% em saúde. João Pessoa é apenas um caso, é verdade. Como são eventuais as histórias de Santana dos Montes e Venda Nova do Imigrante.O fato, entretanto, é que com informação e o exercício da democracia, os brasileiros dispõem de instrumentos para melhorar a vida nos lugares em que moram. Foi-se o tempo em que as benesses caíam do céu (ou de Brasília).Agora, todos estão convocados a agir. |