Agricultura - A nata do café |
2006. Ano 3 . Edição 28 - 8/11/2006 Alavancados pela proliferação das cafeterias e pelas exigências cada vez mais sof isticadas do mercado consumidor, os produtores e exportadores de café vivem uma nova época de ouro, com os grãos especiais cotados a preços jamais vistos Por Manoel Schlindwein, de Brasília
Por quase três séculos, o peso do café foi decisivo na balança comercial brasileira. Sua exportação trouxe divisas, progresso e até uma enxurrada de imigrantes para o país. Não é exagero afirmar que Brasil e café são sinônimos de longa data.Há alguns anos, no entanto,mais um capítulo vem sendo escrito nessa história,sem muito alarde. Seus artífices são os quase cinqüentaprodutores e distribuidores de grãos de altíssimo padrão de qualidade,os chamados speciallity coffees,ou,em português, "cafés especiais".Eles apostaram num segmento em expansão no mundo inteiro e que agora começa a trazer divisas para o país. Ao contrário das práticas costumeiras, seu lucro não vem da quantidade de toneladas exportadas - o segredo do sucesso está no rigoroso processo de cultivo dos grãos, o que garante a superioridade do sabor. Não é de hoje que os alimentos refinados e de grife invadiram as prateleiras.O consumidor exige mais qualidade, e os produtores respondem imediatamente. Foi assim com os vinhos, as pimentas, o azeite de oliva e até o vinagre,que nas mesas mais requintadas passou a ser o aceto. Não haveria de ser diferente com o café.A sofisticação no cultivo e preparo trouxe à bebida detalhes e nuances semelhantes às do vinho. Para ter uma idéia do que está em jogo, basta dizer que uma saca de 60 quilos de café de primeiríssima grandeza foi arrematada por exatos 17.657,36 reais no ano passado.Trata-se da vencedora da sétima edição do leilão Cup of Excellence, evento anual promovido pela Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA, da sigla em inglês).Os compradores foram duas lojas estrangeiras:a australiana Espresso e a canadense Caffe Artigiano.
Campeões O encontro reúne a nata do café brasileiro, por assim dizer. Para participar é preciso enviar com antecedência amostras daqueles grãos cultivados com todo o mimo.Na competição passada, os três primeiros lugares partiram de lotes localizadas em Carmo de Minas,no sul do estado de Minas Gerais.A Fazenda Santa Inês,de propriedade de Francisco Isidoro Dias Pereira, conquistou o prêmio Gold Cup of Excellence, com a nota recorde de 95,85 pontos, de um máximo de 100. Foi a mais alta já registrada nas 22 provas realizadas em todos os países que aderiram ao campeonato.O Cup of Excellence foi criado no Brasil em 1999 por iniciativa da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização Internacional do Café (OIC). A partir de 2003, o concurso foi adotado por El Salvador,Nicarágua,Honduras, Bolívia e Colômbia. Fonte: Midic/Secex Fonte: Midic/Secex
Apetitoso, mas e daí? Felizmente, os grãos especiais não se limitam a reluzir de prêmio em prêmio.Ao lado dos torrados e moídos, de grande valor agregado, eles estão movimentando o setor como há muito não se via.O volume de exportação registrado pelo Sindicato das Indústrias de Café de São Paulo (Sindicafé-SP) aumentou 309% entre 2002 e 2005.Um acordo firmado entre o Sindicafé-SP e a Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), órgão do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, foi o responsável pelo impulso. E este ano promete ser ainda melhor, pois até o mês de junho o Sindicafé- SP já havia exportado 86% do volume total de 2005, em termos de café torrado, moído e especial. Em outro acordo, assinado no final de julho deste ano pela Apex-Brasil e a BSCA, foram previstos 11,5 milhões de reais para investimentos em marketing e publicidade, participação em eventos internacionais e promoção de encontros de negócios com compradores estrangeiros no Brasil e no exterior.A idéia é alavancar as exportações, que no passado ficaram em 37,3 milhões de dólares,somados os cafés especiais, os torrados e moídos.As metas do convênio prevêem que os filiados à BSCA consigam exportar 43 milhões de dólares em 2006, 48,1 milhões em 2007 e 54,2 milhões em 2008. A parceria pretende aumentar o número de empresas exportadoras e de postos de trabalho no setor. Algo bem palatável, dizem os signatários de ambas as partes."O que estamos fazendo é mostrar ao mundo que o Brasil é capaz de exportar muito mais do que commodities, ele também pode oferecer toda uma linha de produtos diferenciados", diz o gestor do projeto,Marcos Soares, da Apex-Brasil. Dois ingredientes foram determinantes para o sucesso no ex terior. O aumento de apreciadores da bebida e as atraentes redes de cafeterias Até o mês de junho, o Sindicafé-SP já havia exportado 86% do volume total de 2005 em termos de café torrado, moído e especial O passo foi decisivo para fazer tremular a bandeira verde-amarela nas gôndolas estrangeiras."Nós tínhamos uma enorme frustração de não encontrar as marcas brasileiras expostas nas prateleiras dos supermercados de países importadores. Agora finalmente conseguimos mudar isso", orgulha-se Natham Herszkowicz, diretor executivo da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic).O Brasil é o maior exportador de café do mundo,mas,pasme o leitor, até 2002 não exportava grãos torrados ou moídos - operação que cabia aos compradores.Conforme especialistas do setor,os industriais brasileiros não sabiam como funcionavam os mercados estrangeiros, como era feita a distribuição e o nível de concentração em cada região.
Publicidade Faltava uma direção, como na década de 1920, quando o café chegou a representar 70% das exportações brasileiras. Durante anos a política do governo estava atrelada exclusivamente ao preço,uma vez que as ações de marketing focando a qualidade não correspondiam a um incremento nas vendas."A maciça campanha publicitária promovida pela Colômbia nos estimulou a fazer algo semelhante.Afinal, temos um café tão bom quanto o deles, senão superior",observa Guilherme Braga, presidente do Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé)."Lembro de folhear um livro numa feira do setor em Seattle, nos Estados Unidos, há poucos anos,e a descrição que davam sobre o Brasil era de um país dono de um café de baixa qualidade", resume Cristiano Carvalho Ottoni.É um simples episódio,mas representa bem a dificuldade que os empresários brasileiros tiveram de enfrentar.Ottoni é sócio-proprietário da Spress Café, maior exportadora de cafés especiais do país, e garante que o quadro hoje é bem diferente. Sua empresa comercializa grãos verdes de alta qualidade com África do Sul, Noruega,Dinamarca,Alemanha e Estados Unidos - este último já com três distribuidores que cobrem o país de costa a costa.
Lojas A dinâmica de exportação do café em grão mais modesto sempre foi algo, digamos, sem glamour.Na verdade, o café brasileiro anda até ameaçado por fornecedores com preços cada vez mais competitivos - caso do Vietnã, que já detém 15% das exportações mundiais, ante 30% do Brasil (veja os gráficos Maiores produtores mundiais de café e Maiore exportadores de café).Por isso é tão importante ocupar espaço no mercado dos cafés de maior qualidade.Dois ingredientes foram determinantes para colher o sucesso no exterior.De um lado, surgiram os apreciadores da bebida, gente que corre atrás do melhor grão, assim como os livreiros percorrem sebos país afora. De outro, redes de cafeterias como Starbucks deram nova dimensão ao ato de beber a infusão da frutinha.O que a empresa norte- americana fez para o hábito é o mesmo que a rede de fast food McDonald's fez com o hambúrguer.A popularização foi instantânea, e o paladar dos 40 milhões de consumidores da rede começou a se aperfeiçoar. No Brasil, o negócio ganhou asas e várias redes surgiram, como a paulista Fran's Café e a paranaense Lucca Cafés Especiais. Para José Henrique Ribeiro, sócio-proprietário da maior rede de cafeterias do país - a Fran's Café -, o boomdo setor não está ocorrendo agora."Para nós, ele aconteceu na primeira metade da década de 1990. Em 1991, tínhamos dez lojas e alguns anos depois já eram quarenta. Foi um crescimento em progressão geométrica", diz.Pioneiro, ele fez uso do modelo de gestão baseado em franquias antes mesmo de a lei entrar em vigor."Nosso primeiro contrato foi assinado com um recibo de proposta de franqueado, em 1992, três anos antes de a lei ser sancionada.Dá para acreditar?", indaga Ribeiro, sem esconder a satisfação de quem está há 35 anos no setor e deve fechar o ano com 110 lojas espalhadas pelo Brasil. Ele diz que não vê a hora de a concorrente Starbucks aterrissar em solo nacional." O mercado só tem a ganhar.Afinal,o hábito de freqüentar as cafeterias vai aumentar ainda mais."A rede norte-americana deve abrir duas lojas no Morumbi Shopping,na cidade de São Paulo,até o final do ano - uma em novembro e outra em dezembro.A investida é fruto do faro do casal Maria Luisa e Peter Rodenbeck, os mesmos que trouxeram o McDonald's e a Outback Steakhouse para o país."Estou particularmente feliz em poder ajudar a trazer a Starbucks a uma região de onde provém a matéria-prima essencial para muitos de nossos blends exclusivos: o Brasil, terra de algumas das melhores fazendas produtoras de café de todo o mundo", diz Buck Hendrix,presidente da Starbucks para a América Latina. Fazendas Aos poucos, as cafeterias e butiques vão ganhando seu espaço,mas hoje quem lida com cifras na casa dos milhões de dólares são os produtores.Logo no início da década de 1990, quando o então presidente Fernando Collor de Mello extinguiu o Instituto Brasileiro do Café,os plantadores se sentiram meio órfãos da proteção estatal.Mas o grupo reagiu rapidamente e a máxima "A união faz a força" ecoou entre nove fazendeiros do Sudeste do país.Pouco tempo depois surgia a BSCA, entidade que reúne quase meia centena de fazendeiros e possui um certificado de qualidade sem comparação no mercado."Nosso selo é realmente único no mundo, nenhum outro é tão completo,porque o nosso atesta a qualidade do café", resume seu presidente, Alexandre Nogueira. A diferença do selo da BSCA em relação aos demais é o fato de assegurar excelência não só nas questões ambientais e sociais (como reciclagem e ausência de trabalho escravo), como também nas de aroma e sabor.Cada fazenda disposta a conquistar o título deve cumprir um check-list com 175 itens. Os espaços reservados para tomar café se tornam cada vez mais bonitos e sofisticados e redes estrangeiras se instalam no país O creme de la creme do café brasileiro ganha corpo em fazendas dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Bahia. Para entrar no jogo,altitude é fundamental: as melhores colheitas do café tipo arábica,a variedade mais valorizada no mercado,vêm de regiões montanhosas.O diretor do Centro de Café Alcides Carvalho,do Instituto Agronômico de Campinas (IAC),Luiz Carlos Fazuoli, uma das maiores autoridades em café no mundo, conta o segredo, que, embora simples, é seguido à risca apenas por poucos produtores."Para ter um bom café,não basta plantar corretamente.Também não basta colher da melhor forma.É preciso que todos os passos da produção, todos mesmo, tenham elevados níveis de qualidade", explica o vencedor do prêmio de Ciência Aplicada ao Campo 2005, da Fundação Conrad Wessel,algo como o Oscar da ciência brasileira.Em 2004, ele publicou um artigo na revista Nature narrando a descoberta de uma variedade de café descafeinado naturalmente,de enorme repercussão na comunidade científica. A exigência alcança níveis inimagináveis." O consumidor passou a ir atrás das origens do café,quer saber como foi produzido e até mesmo em que fazenda foi cultivado", diz Christian Santiago,do Sindicato da Indústria de Café do Estado de São Paulo (Sindicafé-SP).Não é à toa que o site da BSCAna Internet tem um link onde o usuário pode consultar o número do lote certificado." Vivemos café 24 horas por dia.Cuidamos de cada detalhe da produção,fazemos questão de saber a história e a vida do produto, do início ao fim do processo", diz Francisco Pereira, da Fazenda Santa Inês.Pelo visto,nunca uma citação de Honoré de Balzac fez tanto sentido para o setor.Disse o romancista francês do século XIX:"O café é a bebida que põe tudo em movimento".Desperta não só o corpo,mas os negócios. |