2008 . Ano 5 . Edição 39 - 25/01/2008
Por Jorge Luiz de Souza, de São Paulo
Tanto os países em desenvolvimento quanto os países desenvolvidos estão frustrados com a lentidão das rodadas de negociações multilaterais sobre comércio e integração, e isto tem levado a um crescimento sem precedentes de acordos paralelos. Serão esses acordos uma solução? Não, diz um adversário poderoso. A Comissão das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad - em inglês, United Nations Conference on Trade and Development), em seu relatório anual de 2007 (Trade and Development Report - TDR), qualifica como perigosos os acordos bilaterais que têm sido firmados crescentemente entre Estados Unidos e países menores, ou entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento.
"Os acordos bilaterais, na abordagem do TDR, são tentativas dos países desenvolvidos de firmarem acordos em áreas que interessam a eles. É possível que atrapalhem os processos de integração do tipo Mercosul. Essa é a posição do relatório", diz a pesquisadora Luciana Acioly, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), acrescentando que o documento "chama a atenção para a possibilidade de essa estratégia, no longo prazo, não ser a melhor". Por outro lado, diz, "o trabalho coloca uma gama de questões relacionadas à integração regional, especialmente quanto ao que se chama de novo regionalismo, que não necessariamente se faz entre países que estão em uma mesma região, mas entre países que têm interesses comuns, embora estejam geograficamente distantes".
A pesquisadora explica que, nesses acordos bilaterais, "o país desenvolvido oferece a vantagem do acesso ao seu mercado, como contrapartida a um acordo, por exemplo, com relação à propriedade intelectual ou acesso a serviços. Mas o acesso ao mercado não é certo por causa de políticas protecionistas que o país pode lançar mão quando achar necessário - basta um lobby interno.Do ponto de vista do país em desenvolvimento que aposta nisso, ele faz concessões maiores no acordo bilateral do que ele faria em acordos multilaterais e, então, fica mais vulnerável. Chegam a abrir mão, por exemplo, de vários pontos ainda não fechados nas rodadas multilaterais".
"O que a Unctad sempre promoveu foram acordos entre países em desenvolvimento, entre países que pertencem mais ou menos a um nível comparável de competitividade. A Unctad nunca viu com bons olhos acordos do tipo Norte-Sul (entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento), sejam bilaterais, sejam regionais", atesta o ex-secretário geral da Unctad, o diplomata brasileiro Rubens Ricupero, atualmente diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), de São Paulo. Ele acrescenta que "nesse tipo de assimetria a tendência é que o parceiro mais fraco tenha menos benefícios e seja obrigado a fazer maiores concessões".
"O comércio Sul-Sul (entre países em desenvolvimento) passou a ser uma realidade muito importante. O relatório da Unctad mostra que o comércio entre países em desenvolvimento já atingiu um volume muito respeitável, sobretudo graças ao enorme desenvolvimento do comércio da China e dos países asiáticos em geral. O que está faltando, inclusive para nós do Mercosul, é estabelecer as pontes com os processos de integração de outros continentes. Por exemplo, entre o Mercosul e a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean), entre o Mercosul e a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), que inclui a África do Sul, Moçambique e outros países. Esse vai ser o desafio a partir de agora, de estabelecer mecanismos entre países em desenvolvimento, mas de continente a continente", acrescenta o diplomata.
ALCA Segundo o professor Mario Ferreira Presser, do Instituto de Relações Internacionais (Irel), da Universidade de Brasília (UnB), "percebe-se que há uma variedade de regionalizações, mas uma que parece não funcionar bem é uma regionalização 'a la' Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Na regionalização 'a la' Alca, os países em desenvolvimento são obrigados a renunciar a uma série de flexibilidades de que eles ainda dispõem, especialmente nas regras de comércio. A Alca é o que nós chamamos de uma OMC-Plus, porque as regras vão mais além da Organização Mundial do Comércio (OMC). Nesses processos de inserção de países em desenvolvimento e países desenvolvidos com acordos de livre comércio, o balanço não é tão satisfatório assim. Acordos de livre comércio com o Norte de maneira geral não têm mostrado resultados tão favoráveis assim".
O professor explica também que outra novidade da regionalização é que "alguns países do Sul (países em desenvolvimento) acumularam reservas consideráveis, como é o caso do Brasil, por exemplo, aqui na América do Sul, e agora podem ter planos mais ambiciosos de integração econômica porque dispõem de certa capacidade de autofinanciamento, independentemente das instituições multilaterais. Podem tirar partido dessas reservas elevadas financiando infra-estrutura e o comércio exterior.Abre-se espaço de manobra no plano monetário, financeiro. Enfim, há iniciativas das quais o Brasil está participando, como é o Banco do Sul, que vão nessa direção. Se elas vão dar certo ou não,o tempo dirá.Mas essa é uma opção que não existia antes".
Segundo a pesquisadora Luciana Acioly, "como existem países com níveis de desenvolvimento diferentes e graus de engajamento no circuito financeiro internacional também diferenciado, essas diferenças vão causar, no processo de integração, uma assimetria. Daí o relatório da Unctad enfatizar a necessidade de se fazer uma cooperação para compensar essas assimetrias.Os níveis de desenvolvimento diferentes também podem representar uma oportunidade e fortalecer relações de complementaridade. O relatório recomenda uma integração mais profunda no caso dos países em desenvolvimento, para ganhar escala de produção (principalmente no caso de países menores) e capacidade de financiamento, além de uma série de medidas positivas para que os países com níveis diferentes de desenvolvimento firmem uma cooperação mais efetiva e aprofundem a integração".
TRÊS PONTOS Luciana Acioly afirma que "o processo mais perfeito que conhecemos é o de unificação europeu, mas, quando foi iniciado, o contexto era muito diferente, não havia globalização financeira, era possível negociar barreiras ao comércio.Agora, são outros desafios. O principal é criar uma blindagem para as crises, como as que caracterizaram o final dos anos 1990. O segundo é criar uma infra-estrutura física e energética, porque sem isso não há integração. E o outro é para compensar desigualdades de renda. O relatório está baseado nessas três considerações".
Detalhando um pouco mais, ela diz que o relatório da Unctad recomenda "a coordenação das políticas macroeconômicas com o objetivo de estabilizar o câmbio. Países que já se submeteram a uma liberalização maior são mais sujeitos à volatilidade do mercado de capitais. O próprio movimento do comércio tem efeito sobre o câmbio, que é a medida de competitividade frente aos preços internacionais". O segundo ponto, diz ela, é "a cooperação para o financiamento do desenvolvimento, o que permite acesso ao crédito sem endividamento em moeda forte", e, por fim, a criação de um "fundo de convergência, para compensar os países econômica e socialmente mais frágeis e amparar aqueles que ficam fora do mercado de trabalho, com função de resgate social".
"Para a Unctad, o critério de um bom acordo de um processo de integração é que ele promova uma mudança estrutural, aumente a participação de bens de maior valor agregado na pauta de exportação, e não que considere o comércio como um fim em si mesmo.Nesse sentido,o crescimento do comércio não se confunde necessariamente com desenvolvimento. Pode haver crescimento do comércio sem avanço econômico à exportação de bens industrializados, que agregam valor ao produto final, e não ter mudança estrutural, isto é, mantém-se a estrutura produtiva intacta e as forças produtivas não são estimuladas a ponto de mudar a composição do Produto Interno Bruto (PIB) em favor das atividades de maior intensidade tecnológica", diz Luciana.
AGRICULTURA Para o professor Mario Presser," os assuntos que nos interessam junto aos Estados Unidos e à União Européia são multilaterais - é a agricultura, e ela não é negociada à parte.Por isso, a Alca e um acordo de livre comércio do Mercosul com a União Européia não nos trazem benefícios substanciais no momento. Isso deve ficar para depois da Rodada Doha. O Brasil deve se concentrar agora em acabar a Rodada Doha. Nós temos negociações muito difíceis em áreas de agricultura. Se nós fizermos, antes, concessões em áreas fora da agricultura de forma bilateral, vamos nos enfraquecer em Doha.Eu diria que estrategicamente é impossível. Nem que quiséssemos, o problema é que a dinâmica da negociação multilateral nos obriga a esperar. Nem é uma questão ideológica, mas é uma questão de estratégia de negociação. Você não ceder antes de ter assegurado que a agricultura vai ter uma negociação multilateral favorável. Se nós acenarmos para eles que vamos fazer em separado, é aí mesmo que eles recuam na negociação multilateral".
O professor relata que "por volta de setembro de 2007, fiquei com muito receio a partir de declarações de setores do governo brasileiro de que a negociação, tal como estava colocada naquele momento, em agricultura e produtos nãoagrícolas, fosse ser aceita pelo Brasil. Era muito desfavorável para nós em produtos industriais, em relação a uma proposta digamos moderada em agricultura. Aparentemente, a proposta em agricultura é o máximo que nós vamos levar, e não conseguiremos avançar muito além dela.É uma proposta modesta, cautelosa, de longo prazo, que contempla muito os interesses defensivos dos países desenvolvidos. Mas nos favorece porque estabelece regras de longo prazo mais favoráveis na agricultura, embora os ganhos imediatos não sejam muitos. Como nós somos competitivos na agricultura, alguns ganhos imediatos teremos, mas estão longe dos sonhados. Ora, esse tipo de proposta, a dos países desenvolvidos quererem barganhar uma grande liberalização em indústria e serviços por essa liberalização extremamente cautelosa em agricultura, fica complicado aceitar".
Segundo o professor,"o governo brasileiro tem posições muito divididas sobre isto, e especialmente o Ministério da Agricultura passou a defender, sem ser questionado pelo presidente da República, que o Brasil devia aceitar a proposta de produtos não-industriais e serviços. O fato expunha uma posição dividida dentro do país, que nos enfraquece nas negociações.Os outros países estão todos olhando e, se eles sabem que o Ministério da Agricultura,que tem muita importância nas negociações, está defendendo a proposta deles, eles jogam duro. Cheguei a acreditar que a posição do presidente era a favor dessa negociação, mas ainda bem que eu estava errado.Acabou por prevalecer uma posição mais sensata de que o que estava na mesa na agricultura não justificava a ambição dos países desenvolvidos em indústria e serviços. É por isso que há um impasse. O impasse é um bom sinal,de que desta vez os países em desenvolvimento em seu conjunto estão negociando para valer, estão querendo fazer valer os seus interesses".
CRESCIMENTO O professor Presser assinala também que o documento da Unctad mostra que o período de 2003 a 2007 foi marcado por um forte crescimento entre os países em desenvolvimento, "e desta vez o crescimento foi generalizado, atingindo até os países africanos. É a primeira vez na globalização que se pode dizer que todos os barcos estão subindo com a maré montante. Mesmo para os adversários da globalização fica difícil de refutar que desta vez os países em desenvolvimento estão sendo favorecidos, ao invés da tendência anterior, em que os países desenvolvidos eram os mais favorecidos". Mas ele destaca o caso do Brasil: "Nós não participamos da mesma maneira dessa conjuntura favorável".
"Na verdade, o documento da Unctad mostra que o Brasil adotou políticas econômicas que não são exatamente as políticas econômicas adotadas pelos países que tiveram sucesso.Um conjunto de políticas macroeconômicas, uma política fiscal restritiva, uma política monetária também restritiva e uma valorização da taxa de câmbio devido a esses dois fatores, que não são as políticas adotadas pelos demais países. E o resultado foi desfavorável para o Brasil, se medirmos o resultado em termos de crescimento. Os países em desenvolvimento estão sendo bastante beneficiados agora no início do século 21 pelo crescimento, inclusive os países africanos. As receitas de sucesso da inserção da globalização dos demais países em matéria de políticas econômicas não correspondem àquelas adotadas pelo Brasil. E o Brasil de certa forma foi punido por não ter adotado políticas econômicas tão restritivas", diz o professor.
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