2010 . Ano 7 . Edição 58 - 26/02/2010
Brasil investe em projetos de interligação com países vizinhos. Unasul incorpora plano multilateral para infraestrutura comum na região, que prevê mais de 500 obras
Márcio de Morais - de Brasília
O Brasil tem dado passos importantes para integrar sua infraestrutura de transportes à dos outros países da América do Sul, com o objetivo de criar novos canais para o escoamento da produção nacional a custos mais baixos. Mas a integração da infraestrutura nos 12 países da região deve ganhar impulso nos próximos anos. É que a União dos Países da América do Sul (Unasul) incorporou, no final do ano passado, o plano multilateral denominado Iniciativa de Integração da Infraestrutura Sul-americana (Iirsa) com previsão de investimentos de US$ 74,5 bilhões.
"O grande sonho é transformar a Unasul numa integração geral, não só aduaneira e comercial", afirma o representante brasileiro na Iirsa e secretário de Investimento Estratégico do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Afonso Almeida, recorrendo ao exemplo da Europa, unificada após meio século de preparativos. No caso da América do Sul, o processo ganhou uma espinha dorsal, com a aprovação do plano de integração. A incorporação traduz a concordância dos doze países em implementar políticas públicas internas com o objetivo de convergir os setores de transportes (rodoviários, aquaviários e aeroviários), energia e telecomunicações, oferecendo instalações físicas, condições técnicas e capacitação profissional para caminharmos para um continente sem fronteiras, como na Europa. A Iirsa foi criada há 10 anos, mas somente a partir de 2007 começou a executar projetos.
Oposição - Para o presidente da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), Rodrigo Otaviano Vilaça, "não há ainda produção econômica suficientemente capaz de justificar o investimento ferroviário do Brasil em direção aos países do Oceano Pacífico". Em debate sobre a integração, promovido pela Comissão de Infraestrutura do Senado no final do ano passado, Vilaça propôs que o Brasil priorize a solução dos seus próprios problemas setoriais. Por isso, defendeu uma cronologia para o processo de integração. "O País (Brasil) deveria preocupar-se, em primeiro lugar, com investimento em suas necessidades", disse, enfatizando, no entanto, a importância do desenvolvimento futuro de corredores multimodais de transportes, em eixos multinacionais que reconheçam a logística e o potencial produtivo das regiões de cada lado da fronteira. Para que isso ocorra no segmento ferroviário, no entanto, será preciso, segundo ele, homogeneizar as condições técnicas e regulatórias de todos os países, com a adoção de regulamentação transnacional única e malha internacional de padrão tecnológico semelhante e compatível.
Segundo Vilaça, um dos maiores obstáculos à integração ferroviária é a variedade de bitolas (sete) nos países sulamericanos e da América Central. Para Vilaça, isso impede o uso de conteiners por impor a necessidade de transbordos da carga. As diferentes bitolas remontam, segundo ele, ao período de implantação das ferrovias em toda a região pelos ingleses, ainda no século XIX, medida que teve como objetivo inviabilizar o comércio dentro do continente
Recursos - A Iirsa administra uma carteira com dois blocos de projetos desenvolvimentistas eleitos pelos 12 países-membros, ao custo estimado de US$ 74,5 bilhões: o primeiro, com 510 projetos; e outro, com 31 projetos a serem concluídos até o final do ano. Desses 31 projetos, dois foram concluídos pelo Brasil, 19 estão em execução e outros 10 ainda estão em preparação, de acordo com o último balanço do Ministério do Planejamento. O relatório informa que, dos projetos que integram o bloco maior, 396 serão financiados pelos tesouros nacionais, no valor de U$ 36,8 bilhões. Outros 62 serão feitos por meio de parcerias público-privadas (PPP), no valor de U$ 23,4 bilhões; 52 são exclusivamente privados, no valor de U$ 14,4 bilhões.
Mas ainda há inúmeras pendências, como a própria desigualdade de desenvolvimento econômico e social dentro da região. Há dúvidas, por exemplo, sobre a participação de cada país no financiamento dos investimentos. Outra questão é a cobrança de pedágios para recuperar o valor investido.
Machado relata que, em uma reunião da Unasul, Evo Morales, presidente da Bolívia, reclamou que o corredor Chile-Brasil só teria como finalidade trazer produtos chilenos para o Brasil e brasileiros para o Chile. "(Os bolivianos) vão cobrar por isso", confirma Machado. "Eles estão com toda razão", reconhece o técnico do governo brasileiro. De fato, a única coisa que a Bolívia teria para vender para os dois vizinhos seria energia em forma de gás, o que já faz por meio de gasoduto construído pela Petrobras.
Problemas como esses são apontados como obstáculos à implementação do plano Iirsa. Embora diversos dos projetos requeiram contrapartida dos vizinhos para que possam se realizar e cumprir o papel de integrar países, só o Brasil tem honrado com presteza a sua parte. "As duas únicas obras da Iirsa completas foram feitas no Brasil: a ponte Assis Brasil, na fronteira do Acre com o Peru; e a do rio Tacutu, na divisa Roraima/Guiana", informa Afonso Almeida. Para ele, a prontidão brasileira em atender a Iirsa deve-se à incorporação de vários dos seus projetos pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), principal política pública de investimentos adotada pelo governo Lula. "É o que faz com que o Brasil tenha liderança no quesito execução (das obras de integração)", reconhece.
A expectativa é que o corredor até a Guiana estimule o turismo e a produção de grãos no Amapá. Já a ponte Assis Brasil cumpre papel estratégico de criar acesso rodoviário do centro-sul ao extremo oeste do País, pois incluiu no seu planejamento a execução de vários trechos da BR 364 e 370. Isso permite ir de São Paulo e Minas à divisa entre Acre e Amazonas, uma das regiões nacionais mais remotas e isoladas dos centros econômicos.
O economista e coordenador de Desenvolvimento Urbano do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Bolivar Pêgo, observa que há aspectos a serem considerados na execução da Iirsa, da qual foi colaborador no período de formatação da proposta de sua criação. O primeiro é econômico: a abertura do acesso ao mercado asiático pelo oeste, por meio dos portos do Oceano Pacífi - co, localizados no Chile, Peru, Equador e Colômbia. Essa medida pode viabilizar ganhos de escala, reduzir custos e tornar o Brasil mais competitivo na Ásia, embora subverta a tradição brasileira de só se relacionar com o mundo pela costa leste. O segundo aspecto é humanitário e social. "Se o nosso vizinho está mal, isso nos afeta. Por que não fazer um esforço para ajudá-lo a melhorar seu padrão e bem-estar? Isso também nos afeta e promove a melhoria da autoestima nacional", justifica Pêgo. O fato é que não dá para esperar que os vizinhos melhorem de condições para iniciar os projetos, afirma Machado: "Se fôssemos esperar que os outros países obtivessem o nosso mesmo nível (de desenvolvimento), qual seria o próximo passo? Construir um muro entre nós?"
O projeto de integração tem ainda importância estratégica para a região: com a logística integrada, há o fortalecimento do conjunto dos países em condições mais hegemônicas e homogêneas. "A dimensão do Brasil, historicamente, impõe-nos uma responsabilidade maior na condução do processo de integração. O nosso desenvolvimento econômico é benéfico para toda a região, pois o Brasil é indutor do crescimento econômico sul-americano. Cabe à nossa diplomacia mostrar que isso contribui para o progresso regional de forma decisiva", refl ete o senador Fernando Collor, presidente da Comissão de Infraestrutura. "É como fala o presidente Lula: falta generosidade (na abordagem meramente econômica da questão)", acrescenta Machado.
Collor alerta, no entanto, para a necessidade de o País observar rigor e firmeza nas ações de integração, por temer o uso indevido e mesmo medidas abusivas, com objetivos políticos, para acomodar situações ultrafronteiriças. "O Brasil não pode aceitar o uso político de reivindicações relativas à integração. A sobretaxação de produtos (exportados daqui para os vizinhos) deve ser evitada por negociações e, quando não resolvida pela via diplomática, deve ser objeto de atitude firme, chegando a retaliações e sanções", defende o senador.
Para ele, a integração tem que se assentar no princípio da reciprocidade. "As assimetrias devem ser resolvidas por políticas compensatórias do Estado brasileiro, ou multilaterais, e não podem ser objeto de pressões políticas", insiste. Mas Collor é favorável aos investimentos em integração e considera o Brasil preparado para a empreitada, sob aspectos técnicos e econômicos - nosso País pode contar até mesmo com o pré-sal para ungir a integração com recursos em abundância.
No entanto, o senador reconhece haver carência de estruturas administrativas e de recursos humanos brasileiros para atuar no projeto. Collor afirma que detectou essas carências nas audiências da Comissão de Infraestrutura. Por isso, ao elaborar a agenda 2009/2015 da comissão, estabeleceu um novo ciclo de debates para este primeiro semestre baseado no tema "recursos humanos para inovação e competitividade". Para ele, é injustificável, por exemplo, o adiamento da instalação do Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte (Conit), criado pelo próprio governo para propor políticas nacionais de integração dos diferentes modos de transporte de pessoas e bens.
Retorno - Alguns projetos podem efetivamente não ter retorno econômico, mas são fundamentais para a integração. "Você vê alguma chance de ser econômica uma rodovia como a que liga Cruzeiro do Sul a Rio Branco (ambas no Acre), de mais de R$ 1 bilhão? (A rodovia) é para integrar o povo brasileiro ao Brasil", defende Afonso Almeida. Trata-se de um trecho de quase 700 quilômetros de asfalto no coração da selva amazônica, na BR 364, no âmbito dos planos da Iirsa, em fase de execução. Para ele, o Estado brasileiro tem de assegurar a oferta não só de saúde e educação à população acreana, mas também "acesso ao resto do País".
"Nós somos a favor da integração de per si, independente de qualquer outra coisa; outros só pensam economicamente", comenta Afonso Almeida. Não é esse o caso da rodovia BR 282, que liga Santa Catarina à fronteira com a Argentina, e vai criar condições para a implementação de um corredor de Florianópolis a Missiones. Com mais 40 quilômetros na parte da Argentina, será possível interligar com a malha rodoferroviária argentina, que se interliga à do Chile e à rodovia Panamericana, com acesso a todo o continente sul-americano.
"No PAC, fizemos questão de chegar lá (em Missiones) para forçar a Argentina a fazer aqueles 40 quilômetros", enfatiza Machado, que projeta a construção no local de uma nova ponte entre os dois países, como última etapa para concretização do corredor. "Há uma interdependência nas soluções entre os gargalos nacionais e os da integração, especialmente nas regiões e estados fronteiriços", observa Collor. Ele diz que comunga com o fundador da Valec - Engenharia, Construções e Ferrovias, Paulo Augusto Vivacqua, a proposta de investimentos de integração em duas frentes, "uma formada pelas cidades costeiras, delegando-se poder político e administrativo às cidades portuárias em relação aos terminais e à navegação de cabotagem; e, outra, relacionada com a agricultura, caracterizada pela dinamização do transporte ferroviário e hidroviário interior".
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