2012 . Ano 9 . Edição 73 - 28/08/2012
Foto: Reprodução |
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Imagem de cartaz da campanha de Julio Prestes à presidência da República, em 1930
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Gilberto Maringoni – de São Paulo
Entre agosto de 1944 e agosto de 1945, um debate ocorrido no interior do governo Vargas lançou as bases para uma disputa de concepções econômicas que atravessaria décadas. Trata-se da polêmica entre o líder industrial paulista Roberto Simonsen e o economista liberal carioca Eugênio Gudin. Na pauta, o papel do Estado e a necessidade ou não de se industrializar o país
Há pelo menos sete décadas, a disputa essencial nos rumos da economia brasileira se dá entre uma vertente liberal-mercadista e outra industrial-desenvolvimentista. Nem sempre a controvérsia apresenta contornos nítidos, pois as duas concepções compreendem enorme gama de variantes e algumas intersecções. Existe um desenvolvimentismo conservador e excludente e há partidários de um desenvolvimento com tinturas socializantes. Há também um liberalismo extremado, que defende a total retirada do poder público do jogo econômico, e um liberalismo de ocasião, que em momentos de turbulência corre atrás de financiamentos e socorro do Estado.
Apesar disso, em vários momentos a contenda se radicalizou e colocou seus formuladores em campos opostos no tabuleiro político.
Há um marco definidor nessa sucessão de embates. Trata-se da histórica polêmica protagonizada pelo industrial paulista Roberto Simonsen (1889-1948) e pelo economista carioca Eugênio Gudin (1886-1986), entre 1944 e 1945.
Mais do que uma troca de opiniões pessoais entre dois intelectuais, o embate realizado no âmbito da Comissão de Planejamento Econômico, vinculada ao Conselho de Entre agosto de 1944 e agosto de 1945, um debate ocorrido no interior do governo Vargas lançou as bases para uma disputa de concepções econômicas que atravessaria décadas. Trata-se da polêmica entre o líder industrial paulista Roberto Simonsen e o economista liberal carioca Eugênio Gudin. Na pauta, o papel do Estado e a necessidade ou não de se industrializar o país. Segurança Nacional do primeiro governo de Getulio Vargas (1930-1945), definiu visões cujos desdobramentos se expressam até os dias atuais.
Os tempos eram duros. O mundo enfrentava graves turbulências, como a crise de 1929 e duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945). O impacto fora tão avassalador que redefinira, no plano internacional, as relações políticas e econômicas entre as nações. Novos organismos multilaterais foram criados, como a Organização das Nações Unidas (ONU), o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial. A conjuntura planetária era pautada por um quadro geopolítico de supremacia dos Estados Unidos. No interior de cada país, alteraram-se também as relações entre Estado, sociedade e economia.
Perdia terreno o liberalismo econômico em favor de um capitalismo planejado, que buscava erigir mecanismos de defesa contra crises recorrentes. A ideia de regras que balizassem o desenvolvimento florescia não apenas em um país de economia centralizada, como a União Soviética, mas também nos Estados Unidos, a partir da experiência do New Deal, vultoso programa de investimentos e intervenções patrocinado pelo governo de Franklin Roosevelt (1933-1945).
POLÍTICA INDUSTRIAL É no calor dessa hora que Simonsen e Gudin apresentaram seus argumentos sobre o futuro do Brasil. Tudo começou quando o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio solicitou ao Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, órgão subordinado à pasta, que preparasse um relatório para subsidiar a formulação de uma política industrial e comercial para o país. Simonsen, um de seus membros, foi escolhido para realizar a tarefa.
Após meses de trabalho e da utilização dos precários dados estatísticos disponíveis, o industrial apresentou suas conclusões – sob o título A planificação da economia brasileira – em 16 de agosto de 1944. As concepções centrais do documento eram planejamento, presença do Estado na economia e necessidade da industrialização, como forma de aumentar a renda nacional.
Entre outros pontos, Simonsen destacava que:
“Impõe-se (...) a planificação da economia brasileira em moldes capazes de proporcionar os meios adequados para satisfazer as necessidades essenciais de nossas populações e prover o país de uma estruturação econômica e social, forte e estável, fornecendo à nação os recursos indispensáveis à sua segurança e sua colocação em lugar condigno, na esfera internacional”.
A diretriz deveria, em suas palavras, ser de amplo espectro:
“A planificação do fortalecimento econômico nacional deve, assim, abranger, por igual, o trato dos problemas industriais, agrícolas e comerciais, como o dos sociais e econômicos, de ordem geral”.
Foto: Otávio Nogueira
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Eugenio Gudin não acreditava na viabilidade da indústria no Brasil. O melhor, para ele, seria o país aproveitar suas vantagens comparativas de clima e terras férteis e se firmar como exportador agrícola
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Para obter sucesso em suas ideias, Simonsen propunha diretrizes educacionais:
Toda uma série de providências correlatas deveria ser adotada; a montagem de novas escolas de engenharia, a vulgarização de institutos de pesquisas tecnológicas, industriais e agrícolas; a intensificação do ensino profissional. Impõe-se, da mesma forma, a criação de bancos industriais e outros estabelecimentos de financiamento.
DEFESA LIBERAL O texto foi logo enviado à Comissão de Planejamento Econômico, subordinada ao Conselho de Segurança Nacional. Apesar do nome, a comissão tinha uma composição favorável a setores liberais-conservadores. Seu integrante mais proeminente era justamente Eugenio Gudin.
Vargas tinha como método de gestão abrigar na administração visões políticas distintas e até opostas entre si. Era uma maneira de colocar demandas e pressões sociais sob controle.
Quando Gudin leu as páginas produzidas por Simonsen, decidiu produzir uma contundente réplica. O texto, intitulado Rumos de política econômica, foi publicado seis meses depois, em 23 de março de 1945. O economista tratou de torpedear parágrafo a parágrafo os argumentos de seu oponente. Suas palavras são duras:
“O conselheiro Roberto Simonsen filia-se (...) à corrente dos que veem no ‘plano’ a salvação de todos os problemas econômicos, espécie de palavra mágica que a tudo resolve, mística de planificação que nos legaram o fracassado New Deal americano, as economias corporativas da Itália e de Portugal e os planos quinquenais da Rússia. Não compartilho dessa fé”.
(...) “A verdade é que temos caminhado assustadoramente no Brasil para o capitalismo de Estado. O próprio projeto Simonsen assinala (...) a lista das indústrias já tuteladas pelo Estado: aço, álcalis, álcool anidro, petróleo, celulose, alumínio, etc. Que celeuma não levantaria nos Estados Unidos a ideia de uma encampação pelo Estado da United States Steel e das jazidas de minério do Lago Superior, ou na Inglaterra a da nacionalização das indústrias do aço, do petróleo, dos álcalis etc.?”
Ao longo de 98 páginas, o economista tentava desconstruir uma a uma as postulações de seu oponente, afirmando ser necessária a eliminação paulatina dos mecanismos estatais de intervenção na economia. Defendia a livre circulação de capitais estrangeiros no país e a igualdade de tratamento entre este e o capital nacional. Advogava o fim das restrições de remessa de lucros das empresas estrangeiras aqui instaladas. Gudin preconizava ainda uma política austera de combate à inflação, com redução de investimenttos públicos e contração do crédito. O apoio à indústria deveria ser feito àquelas compatíveis com os recursos do país.
RESPOSTA DE SIMONSEN O documento motivou uma resposta dura e fundamentada de Simonsen, em junho do mesmo ano. Ao longo de 62 páginas, o empresário, entre outras coisas, acusa Gudin de ser contra a indústria nacional e de mutilar transcrições de seu documento. E voltava ao ponto central de seu raciocínio:
“Na apreciação das evoluções verificadas em vários países, impõem-se, cada vez mais, à nossa consideração, as profundas diferenciações existentes entre as estruturas econômicas e sociais das nações consideradas ricas e das que se encontram em pronunciado atraso”.
(...) “Essas soluções [para reduzir as disparidades] demandam a ação intervencionista do Estado, quer no interior do país, através de uma adequada política monetária, social, de obras públicas e de toda uma série de medidas de ordem técnica, quer no ambiente internacional, pela obtenção de mercados que possam manter o ritmo do trabalho em nível conveniente”.
Quando se volta para o Brasil, ele é claro:
“No Brasil, a fraqueza e a instabilidade econômicas nos levaram à adoção de uma série de planejamentos parciais e intervencionismos de Estado, sempre reclamados pelos produtores em dificuldades e, quase sempre, mais tarde, por estes mesmos, condenados”.
Mais à frente, Simonsen explicita o que entende por planejamento:
“O planejamento econômico é uma técnica e não uma forma de governo. Não exclui os empreendimentos particulares. Pelo contrário. Cria um ambiente de segurança de tal ordem que facilita o melhor e mais eficiente aproveitamento da iniciativa privada, que está intimamente ligada ao conceito da propriedade”.
Foto: Arquivo/Agência Estado/AE
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Brasília, dias antes da inauguração. A construção da nova capital seria um dos símbolos do modelo desenvolvimentista que pautou a economia brasileira durante a maior parte do período 1930-80
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Em 24 de agosto, Gudin escreveria uma longa carta à Comissão de Planejamento Econômico, decidido a encerrar a polêmica. Em suas linhas, o economista alegava: “Eu não faço nem nunca fiz guerra à indústria nacional”. E desferia uma acusação pesada:
“O que o Dr. Simonsen não quer é concorrência. O que ele quer é que o Estado, por um empréstimo obtido de governo a governo, proporcione aos industriais existentes a aquisição de novo aparelhamento e não permita a entrada de novos concorrentes. É o caso típico do que diz [o economista liberal Ludwig Von] Mises [1881-1973]: O plano daria aos atuais proprietários e dirigentes das indústrias uma posição privilegiada contra possíveis novos e eficientes concorrentes”.
Não haveria continuidade. A queda do Estado Novo levaria à dissolução da Comissão de Planejamento Econômico. Mas o tema voltaria à baila na década seguinte e pautaria o debate econômico brasileiro até os dias de hoje.
VOCAÇÃO AGRÁRIA Gudin não acreditava na viabilidade de uma economia industrial no Brasil. O melhor, para ele, seria o país aproveitar suas vantagens comparativas dadas pelo clima e pela extensão de terras férteis e se firmar no cenário mundial como grande exportador agrícola. Um de seus mais importantes admiradores, o ex-ministro do Planejamento Roberto Campos (1917-2001), assim se referia a essa concepção:
Gudin insistia em que o processo industrializante deveria observar as linhas de vantagens comparativas e deveria caber principalmente ao setor privado, sem se relegar a agricultura à posição de vaca leiteira para financiar a industrialização1.
Se formos à essência da controvérsia, o que estava em jogo era a definição do papel do Estado na vida nacional. País de formação capitalista relativamente tardia – a consolidação do sistema se dá na segunda metade do século XIX, com o fim da escravidão –, o Brasil teve como diretriz econômica dominante o liberalismo até 1930. A perda de legitimidade do modelo ocorre quando a economia liberal perde terreno no plano internacional, depois de mais de um século de hegemonia.
Grosso modo, os liberais veem no mercado o elemento dinâmico da atividade econômica e os desenvolvimentistas advogam a necessidade de intervenção e planejamento estatal para promover o desenvolvimento e evitar crises.
Em seu livro Análise de problemas brasileiros (1965), Gudin assim classificava suas ideias:
“A doutrina liberal de hoje pode ser definida como a de abstenção do Estado de toda atividade econômica que possa ser realizada pela iniciativa privada, inclusive os serviços de utilidade pública em regime de concessão e as indústrias de base”.
Apesar disso, o economista sempre teve em mente a disputa do aparelho de Estado como meta central para a concretização de suas ideias. Não à toa, foi um dos articuladores do golpe de 1964 e firme defensor da implantação da ditadura militar em nosso país. Com agendas distintas, nem os liberais e nem os desenvolvimentistas abdicavam da participação do poder público na esfera econômica. Assim, o que houve não foi uma contenda meramente econômica. A pauta envolvia, sobretudo, diferentes concepções políticas.
QUEM GANHOU O DEBATE? Quem foi o vencedor? Difícil dizer. Pode-se constatar que Gudin estava mais aparelhado, do ponto de vista técnico, do que Simonsen. Dominava melhor as categorias e os conceitos da área do que o industrial paulista. A dada altura, em seu primeiro documento, ele elabora um programa econômico liberal para o país, algo até então inédito entre nós. Sob esse prisma, o antigo liberal teria vencido o debate.
Mas, se colocada em perspectiva histórica, a polêmica apresenta outra leitura. A partir do início dos anos 1950, o Brasil aprofunda a política desenvolvimentista e industrializante, iniciada após a Revolução de 1930. O fortalecimento do mercado interno e a orientação de substituição de importações, com forte presença do Estado, no bojo de inúmeras disputas políticas, dariam o tom até o início dos anos 1980. Por esse viés, Simonsen afirmou na prática seus postulados.
Com a crise da dívida externa, a partir de 1982, o modelo é colocado em xeque e a disputa pública entre liberais e desenvolvimentistas ganha novos contornos. Aqui entra em cena um novo componente, com rarefeita presença nos embates anteriores. Trata-se de uma vertente popular, materializada em um vigoroso movimento social, que geraria em sua esteira novas agremiações políticas e entidades de massa, em uma escala jamais vista no país. Esses novos atores reclamavam um desenvolvimento menos elitista, com maior distribuição de renda, justiça social e transformações estruturais na sociedade brasileira.
Os novos tempos não relegam a controvérsia a um passado distante. Ao contrário. Guardadas as proporções, ela segue atual como nunca.
_____________________________________________ 1 Campos, Roberto, A lanterna na popa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1994, pág. 240, citado por Borges, Maria Angélica, in: Eugenio Gudin, capitalismo e neoliberalismo. São Paulo: Bienal/Educ, 1997, pág. 137
Quem é quem __________________________________________________________
As trajetórias dos dois debatedores estão entrelaçadas com a história brasileira da primeira metade do século XX
O LIBERAL Eugênio Gudin (1886-1986) foi engenheiro, empresário, jornalista, homem público, introdutor dos cursos de Economia no país e ministro da Fazenda (1954-1955). Foi também o principal expoente da escola monetarista no Brasil, defensor da estabilidade da moeda, do combate à inflação como estratégia de política econômica e da retirada do Estado da economia. Em 1944, integrou a equipe brasileira enviado à Conferência de Bretton Woods (EUA), que definiu o funcionamento do sistema monetário internacional.
Era um crítico da industrialização e opôs-se à criação da Petrobras e à construção de Brasília. Foi por muitos anos o principal formulador da direita brasileira em matéria de economia.
O DESENVOLVIMENTISTA Cochrane Simonsen (1889-1948) foi engenheiro, líder empresarial, fundador da Escola Livre de Sociologia Política de São Paulo, do Senai e do Sesi. Foi também deputado, senador e membro da Academia Brasileira de Letras. Presidiu a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e a CNI (Confederação Nacional da Indústria).
Simonsen foi um defensor radical e intransigente da industrialização do país e da proteção do Estado às indústrias nascentes. Segundo ele, esse seria o caminho para a superação da pobreza. Publicou vários livros, entre eles História econômica do Brasil. É tido como o primeiro grande teórico do desenvolvimentismo entre nós.
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