2012 . Ano 9 . Edição 75 - 28/12/2012
Maíra Kubik Mano – de Salvador
Na última década, Brasil e África estreitaram suas relações, passando para um novo patamar de cooperação internacional. Apesar da crise econômica mundial, a troca de conhecimentos e investimentos movimenta intensamente os dois lados do Atlântico
“Hoje em meu sangue a América se nutre Condor que transformara-se em abutre Ave da escravidão” Castro Alves
Há cerca de 150 anos, o poeta baiano Castro Alves (1847-1871) expressava assim o ressentimento africano com o Brasil Império. Naquele momento, as relações entre os dois lados do Atlântico esfriavam, logo após o fim do tráfico de escravos, em 1850. Num mundo marcado pelo domínio imperial britânico, as relações dos dois mundos tinha como foco a América do Norte e a Europa.
A retomada formal da proximidade viria apenas no final dos anos 1950, com novos Estados africanos conquistando independência política, num ciclo de descolonizações surgido após a II Guerra Mundial. Após a soberania das ex-colônias portuguesas – especialmente Angola e Moçambique – nos anos 1970, um fluxo relativamente intenso de bens e capitais voltaria a cruzar o oceano até tornar-se, no século XXI, uma das prioridades brasileiras.
“O comércio tem se fortalecido cada vez mais. Se pegarmos a África como um conjunto, ela se torna o quarto maior importador dos produtos brasileiros”, ressalta Guilherme Schmitz, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea.
Porém, aponta o entrevistado, apesar da intensidade crescente há ainda pouco registro sobre toda essa movimentação. “Não costuma ser um tema em voga”, comenta. Para suprir um pouco essa lacuna o Ipea, em parceria com o Banco Mundial, lançou, no final de 2011, o livro Ponte sobre o Atlântico – Brasil e África Subsaariana, parceria Sul-Sul para o crescimento. O objetivo foi realizar um estudo do envolvimento do Brasil com a África Subsaariana na última década, com foco no intercâmbio de conhecimentos, comércio e investimentos, para entender melhor essas relações.
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NOVA PERSPECTIVA “A relação Brasil-África não é nova, mas ela passou por várias mudanças. O que vemos é uma nova perspectiva de cooperação internacional”, aponta Fernanda Lira Góes, também técnica de planejamento e pesquisa do Ipea, que participou do livro.
Para ela, a última década marca um dos momentos mais relevantes da política externa em relação à África. Prova disso é que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizou 12 viagens ao continente africano durante seus oito anos de mandato, visitando 21 países, feito inédito. No sentido inverso, o Brasil recebeu 47 visitas de reis, presidentes e primeiros-ministros africanos vindos de 27 Estados. Ainda no campo diplomático, o Brasil mantém atualmente 37 embaixadas na África, comparado a 17 em 2002. Além disso, desde 2003 foram abertas 17 embaixadas africanas em Brasília, somando-se a 16 já existentes.
Para além da diplomacia, fizeram parte do estudo a troca de conhecimentos nas áreas de agricultura, saúde, formação profissionalizante e proteção, e os investimentos comerciais e empresariais do Brasil na África.
Os dados foram colhidos entre outubro de 2010 e agosto de 2011 por uma equipe de profissionais do Banco Mundial, do Ipea e da Universidade de Brasília (UnB). Entre as principais fontes pesquisadas encontram-se documentos oficiais, não oficiais, projetos, relatórios, livros, artigos, discursos, análises, troca de e-mails e entrevistas – mais de 130, realizadas com profissionais nas cidades de Acra, Bamako, Bissau, Dacar, Maputo, Praia, Pretória, Brasília, Rio de Janeiro e Washington.
TROCA DE CONHECIMENTO O estudo do Ipea aponta a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) como uma das grandes responsáveis pela troca de conhecimentos entre Brasil e África. Com alguns projetos estruturantes, ela busca contribuir para o desenvolvimento agrícola do continente no longo prazo. “A Empresa mantém projetos de cooperação internacional para aumentar o conhecimento de atividades técnicas e científicas ou para trocar conhecimento e tecnologia com outros países”, afirmou, ao estudo, Francisco Basílio Freitas de Souza, então diretor da Secretaria de Relações Internacionais da Embrapa.
Um destes projetos é o Cotton Four, realizado em Benin, Burkina Faso, Chade e no Mali, países que sofreram perdas sucessivas com a política de subsídios praticada no mercado internacional de algodão. No Mali, por exemplo, nove variedades da fibra são testadas e adaptadas e dois laboratórios de pesquisa estão em construção. Com o melhoramento genético do algodão e o controle de pragas, o governo brasileiro espera que os agricultores possam expandir o plantio e tenham um retorno mais rápido dele. Iniciativa semelhante, mas com a rizicultura, ocorre no Senegal, onde o Brasil está transferindo tecnologia para que o país seja autossuficiente na produção de arroz.
Em relação à saúde, destaca-se, entre outros, a construção de um laboratório em Moçambique para a produção de medicamentos genéricos para o tratamento de HIV/Aids e outras doenças. A ação é considerada pelos pesquisadores do Ponte sobre o Atlântico como “o maior projeto do Brasil na área de cooperação para o desenvolvimento, contando com investimento de aproximadamente US$ 23 milhões”.
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Ainda em termos de troca de conhecimentos, a experiência do Programa Fome Zero e de outros projetos sociais é ressaltada pelo Ipea por ser atualmente adaptada e reproduzida em países africanos. Desde 2004, o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social) mantém relações com Estados como Angola, Senegal e Quênia visando criar condições para um crescimento mais inclusivo.
INVESTIMENTO E COMÉRCIO O comércio BrasilÁfrica passou de US$ 4 bilhões em 2000 para cerca de US$ 20 bilhões em 2010. Nesse período, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) lançou diversas medidas para facilitar o acesso a empréstimos brasileiros ao continente. Em 2006, por exemplo, criou uma linha de crédito de US$ 1,5 bilhão em Angola para o desenvolvimento de usinas de processamento de etanol de cana-de-açúcar. Algo semelhante ocorreu em 2010 em Gana e Moçambique.
Do lado brasileiro, as principais empresas a investirem no continente são Petrobras, Queiroz Galvão, Vale, Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Correa. Elas atuam basicamente em infraestrutura, mineração e energia – petróleo e gás –, com o apoio do BNDES.
A construtora Odebrecht tem projetos na África do Sul, em Angola, Botsuana, Djibouti, Gabão, Líbia, Libéria, Moçambique e República Democrática do Congo. Alguns desses países também recebem a Andrade Gutierrez, que atua ainda em Camarões, Guiné, Guiné Equatorial e Mauritânia. A Camargo Correa, por sua vez, possui escritório em Angola desde 2006 e, em Moçambique, está construindo a hidrelétrica de Mphanda Nkuwa, no rio Zambezi, além de participar de um consórcio para construção de mina de carvão em Moatiza, liderado pela Odebrecht.
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Já a Vale, que está no setor de mineração africano há oito anos, anunciou em outubro de 2010 investimentos de até US$ 20 bilhões para os próximos cinco anos. A empresa adquiriu mineradoras na África do Sul e na República Democrática do Congo para exploração de cobre e cobalto e realiza atividades de garimpo na Província de Moxico, fronteira com a Zâmbia, entre outros.
A Petrobras, por sua vez, comprou recentemente 50% de participação em um bloco de 7400 km2 no litoral de Benin para a exploração de petróleo leve e conta com 50% de participação em bloco de exploração de petróleo em águas profundas e ultraprofundas na Namíbia.
A presença das pequenas e médias empresas, porém, ainda é muito restrita. “De repente seria mais interessante, agora, dar mais incentivo a pequenas e médias empresas brasileiras e africanas nessa relação. E para comunidades tradicionais, aqui e lá, que têm suas parcerias e suas relações”, ressalta Fernanda Góes.
A COOPERAÇÃO SUL-SUL Os parâmetros que têm guiado essas relações, cada vez mais intensas, são os da chamada cooperação Sul-Sul, ou seja, daquela realizada entre países emergentes. “Antigamente acreditava-se que a cooperação Sul-Sul se limitava a questões técnicas como a transferência de conhecimento. Mas com o levantamento que fizemos no Ipea, descobrimos que há também modalidades como assistência humanitária, ajuda a refugiados e uma cooperação multilateral por organismos internacionais”, ressalta Guilherme Schmitz.
Em termos de gasto, os pesquisadores concluíram que a cooperação Sul-Sul se aproxima da Norte-Sul. A distinção entre elas residiria em dois aspectos centrais: a história e as condicionalidades. “A história da cooperação Sul-Sul é distinta. Ela surge no período da Guerra Fria, por meio ao movimento dos países não-alinhados. Outra diferença é a forma com que são tratadas as condicionalidades. Os países do Norte geralmente pedem uma contrapartida dos países que vão receber essa cooperação na hora de fechar o acordo. Coisas que você não encontra na cooperação Sul-Sul, como as do Brasil, da China e da Índia”, afirma Schmitz.
Segundo ele, o ponto principal exigido pelos países desenvolvidos é o respeito às liberdades políticas e aos direitos humanos. “Podemos até pensar que são coisas boas”, analisa, “mas há uma realidade que se tem que ir mais a fundo porque existem direitos humanos também ligados a questões sociais e econômicas. Para o Brasil existe uma preocupação em relação à democracia, aos direitos humanos e civis, porém não é uma condição sine qua non”.
“Uma relação econômica é sempre uma via de mão dupla, de benefícios mútuos. Não existe uma benevolência brasileira, existem ganhos”, complementa Schmitz. “Quanto maior for a presença brasileira no comércio e as exportações para África, maior vai ser a necessidade de que haja também uma contrapartida em relação à cooperação internacional para o desenvolvimento. Conceitualmente ela está distinta do comércio, apesar de elas andarem juntas. Se quer aumentar seu comércio com países africanos o Brasil vai ter que, necessariamente, entrar nessa cooperação de desenvolvimento e trazer benefícios para o mercado local. Os países africanos demandam isso”.
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ÁFRICA DO SUL Nessa equação, a África do Sul ocupa um lugar de destaque. Integrante dos Brics, bloco de cooperação formado também por Brasil, Rússia, Índia e China, ela se apresenta na posição de “porta de entrada” para os investimentos estrangeiros no continente. “A África do Sul precisa se desenvolver e para isso acontecer ela tem que levar junto a região”, afirma Elton Jony Ribeiro, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea. “Ela se coloca ao mesmo tempo como um país que pode oferecer à região alguns investimentos necessários – infraestrutura e logística como estradas, portos, aeroportos, energia elétrica etc.”
Alguns entraves básicos se revelaram no estudo do Ipea nessa relação internacional. Há poucos voos internacionais ligando África e Brasil e o acesso a comunicações – telefonia e internet – é limitado.
Ribeiroressalta que “estamos falando de uma região que há duas décadas era tida como terraarrasada. A África do Sul estava saindo de um estado de convulsão interna,fruto do regime de segregação racial, e Angola e Moçambique também. A RepúblicaDemocrática do Congo ainda está com problemas sérios, o Zimbábue igualmente”.
“A África segue crescendo muito”, diz Ribeiro. “É hoje onde os Brics competem acirradamente. Mas países como Nigéria e Angola, que são os que mais crescem além da África do Sul, o fazem com a exploração de recursos naturais. Essa demanda vem da China, da Coreia e da Índia. E os investimentos brasileiros se referem basicamente a grandes companhias de recursos naturais, como a Vale e a Petrobras. A África Subsaariana não sofreu tanto com a crise porque esses países continuaram a crescer a despeito dela.”
Os dados confirmam: enquanto alguns Estados europeus vivem sob a ameaça da recessão, o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que as economias da África Subsaariana fecharão 2012 com um crescimento de 5,8%. Índices reunidos pelo livro Ponte sobre o Atlântico mostram que o comércio dos países originais dos Brics com a África aumentou quase dez vezes de 2000 e 2009, passando de US$ 16 bilhões para US$ 157 bilhões, enquanto o comércio mundial apenas triplicou no mesmo período. “Ainda que em geral a mídia não dê a divulgação que deveria dar, o mundo empresarial e político não está alheio a isso”, completa Ribeiro.
A ÁFRICA NO BRASIL Questionada sobre o potencial dos investimentos da África no Brasil, Fernanda Góes, do Ipea, afirma que várias pessoas já apontaram que, agora, é necessário pesquisar isso. Já Schmitz acredita que possibilidade de internacionalização dos países africanos é claramente limitada. “Eles são bastante pobres, e muitos estão na lista de menor desenvolvimento relativo. Apenas oito empresas são internacionalizadas na África do Sul. A situação é muito precária”, conclui.
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