2014 . Ano 10 . Edição 79 - 23/05/2014
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Estação Ferroviária de Goiânia: as formas geométricas da edificação se tornaram memória da art déco, história e identidade da cidade e representação da Marcha para o Oeste da Era Vargas
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As formas geométricas da arquitetura art déco surgiram na década de 1920, em Paris, mas logo encantariam a burguesia da Europa e dos Estados Unidos. Naquele exato momento, no Brasil, Getúlio mandava construir uma nova capital em Goiás, dentro de seu projeto estratégico de promover a Marcha para o Oeste. Goiânia nasceu seguindo a vanguarda arquitetônica de seu tempo. Hoje, a cidade abriga o segundo maior acervo art déco do mundo – e novos tesouros estão sendo descobertos no atual processo de revitalização do Centro Histórico
Rubens Santos, de Goiânia
Com 1,3 milhão de habitantes e 80 anos de idade, Goiânia guarda uma característica peculiar: além de ser a capital mais arborizada do Brasil, detém um dos maiores acervos de prédios art déco do país, quase tão relevante quanto o de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Inaugurada em 1933, a cidade era um ponto estratégico para Getúlio Vargas, que deflagrava a Marcha para o Oeste. Tudo aconteceu por decreto. Primeiro Getúlio nomeou Pedro Ludovico Teixeira como interventor federal em Goiás. A aliança política hegemônica na época, liderada pelo clã dos Caiado, tentou impedi-lo de governar a partir da cidade de Goiás Velho. Foi assim que Getúlio e seu interventor resolveram construir uma nova capital.
Logo que o decreto de transferência da capital foi assinado, Ludovico contratou o arquiteto Attílio Corrêa Lima para traçar o Plano Urbanístico. Formado em Arquitetura no Rio de Janeiro e pós-graduado em Paris, em plena febre criativa das arts décoratifs, Attílio estruturou tanto o traçado urbano de Goiânia quanto os principais edifícios públicos. Tomaram forma, com tinta nanquim sobre papel vegetal, grudado com durex em pranchetas de madeira, a criatividade e a visibilidade da art déco.
O Palácio do Governo e os principais órgãos da administração pública estão localizados na parte mais alta da cidade. E justamente na confluência das duas principais avenidas – Goiás e Anhanguera – surge a Praça Cívica e seu estilo histórico art déco. Essa tendência pela art déco ficou ainda mais visível durante as décadas de 1940 e 1950, quando se formou o acervo atual de 22 obras tombadas em 2003 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Incluindo prédios, monumentos públicos, o traçado do centro original de Goiânia e o Núcleo Pioneiro de Campinas – atual bairro que deu origem à cidade.
Nas pranchetas, o princípio de Attílio foi o mesmo que antecedeu o projeto do urbanista Lúcio Costa na criação do Plano Piloto de Brasília. Porém – e do ponto de vista histórico –, os dois urbanistas, Attílio e Lúcio Costa, adotaram os princípios estruturais dos projetos de Versailles (Paris), Karlsruhe (Alemanha) e Washington (EUA). Foi o que afirmou o próprio Attílio na publicação do seu Plano da Cidade Operária da F.N.M., no Rio de Janeiro.
Nascida na Exposition Internationale dês Arts Décoratifset Industriels Moderns, em 1925, em Paris, a art déco ganhou força em todo o mundo entre os anos 1930 e 1950, principalmente na Europa e na América do Norte. Segundo a explicação de Renato Rocha, professor de Projetos de Arquitetura da Universidade Paulista (Unip), trata-se de um estilo que combina cores discretas, traços sintéticos, formas estilizadas e geométricas, porém influenciadas pela ênfase ao luxo, à ornamentação, e o estilo que criaram monumentos como o edifício- sede da Chrysler, um arranha-céu erguido no coração de Nova York, e o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. “Mas em Goiás a art déco virou um estilo de vida”, analisa o professor Renato Rocha.
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Palácio das Esmeraldas: símbolo do poder político e retrato da preservação do patrimônio histórico
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Armado com bacamarte e bateia, o bandeirante simboliza época em que o país virou as costas ao litoral para buscar riquezas no interior de Goiás
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TURISMO ARQUITETÔNICO O tour da art déco pode ser feito no centro da cidade de Goiânia, onde se concentra o grosso das obras. Tudo começa na Praça Cívica, região central. Ali, o principal conjunto arquitetônico pode ser visto nos cantos e esquinas do Palácio das Esmeraldas, sede do governo estadual. Na praça, há esculturas e o Monumento às Três Raças. Nos prédios vizinhos, como o do cinema, os traços leves, sem ostentação, revelam a influência.
Mesmo à distância, pode-se afirmar que o Museu Zoroastro faz parte do acervo. Entre árvores, as obras influenciadas pelo estilo podem ser encontradas, por exemplo, na Avenida Tocantins, onde foi implantado o Teatro Goiânia. Na Avenida Goiás, que começa na Praça Cívica e termina na Estação Ferroviária, encontram-se outras obras em art déco, a começar pelo desenho do piso em cerâmica. Logo no início, por exemplo, está o Coreto, inaugurado no dia 5 de julho de 1942, durante o batismo cultural da cidade. E em frente ao Coreto está o Relógio da Avenida Goiás.
No meio do caminho, no cruzamento das avenidas Goiás com Anhanguera – as duas principais artérias da cidade –, localiza-se a Praça Attílio Corrêa Lima. Na verdade, o local é mais conhecido como Praça do Bandeirante, pois abriga um monumento com a estátua de bronze do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, criada por Armando Zago.
Na descida da avenida, na esquina da Rua 3, está o Grande Hotel, primeiro de Goiânia, inaugurado em 1937. Foi nesse prédio de três andares, com 60 quartos e espaços internos amplos para desfiles, chás, saraus e os bailes característicos da época, que a sociedade goianiense recebeu, em 1947, a visita do ilustre antropólogo e filósofo belga Claude Lévi-Strauss. O tour termina no final da Avenida Goiás, onde está a antiga Estação Ferroviária e um dos símbolos da cidade.
CIDADE DECORATIVA A partir desse núcleo de edifícios públicos, a art déco acabou por influenciar as construções privadas da cidade, especialmente em seu bairro inicial, Campinas, que era uma pequena cidade antes de abrigar a nova capital. Assim, a art décoratif influenciou a construção dos muros, da capela e até de túmulos do cemitério local. Hoje, mais de 100 prédios do bairro têm fachadas construídas em estilo art déco, mas escondidas pelas placas do comércio. Somente em 1999, durante a discussão do projeto de revitalização de Campinas, a Associação dos Lojistas encomendou um projeto visando à arte urbana, com ênfase nas questões do trânsito e da acessibilidade.
“No estudo de requalificação de Campinas, procuramos viabilizar os aspectos históricos e urbanísticos na organização setorial do comércio, criando uma percepção do bairro como um shopping a céu aberto”, explica o autor do projeto, o arquiteto e professor Marcos Arimatéia, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás. “Há uma opinião unânime de que o nosso bairro tem de passar por uma intervenção urbana, combinando a revitalização da arquitetura histórica com as necessidades da economia, como a criação de espaços para estacionamentos”, explica a empresária Margareth Sarmento.
Esse processo de revitalização, que já dura mais de uma década, trouxe à tona um tesouro escondido. A ideia inicial era limpar as fachadas e reduzir a poluição visual. “Mas, por trás dos letreiros, fomos surpreendidos por uma centena de construções em art déco”, relata o arquiteto Arimatéia. “Trata-se de um acervo arquitetônico tão rico quanto relevante”, diz. Doravante, há um pacote de desafios a enfrentar e de boas notícias a usufruir. Neste momento, por exemplo, debate-se a implantação de um novo sistema de transporte na cidade, o BRT (Bus Rapid Transit), que precisará demolir construções para abrir espaço aos veículos. Quais prédios históricos sacrificar? Uma boa notícia é o PAC Cidades Históricas anunciado pelo governo. Goiânia está incluída. Graças ao acervo art déco erguido naqueles tempos de Marcha para o Oeste.
O que é art déco
Criado inicialmente para a burguesia por conta do emprego de materiais luxuosos como marfim, a laca e o jade, o termo art déco – abreviação francesa para art décoratif – trouxe à tona o predomínio das formas geométricas, combinando linhas retas e curvas, todas estilizadas em design abstrato. Envolveu o cubismo, o construtivismo e o futurismo, enquanto explorava as formas femininas e as figuras de animais. Logo dominou a arquitetura, as artes plásticas e as artes aplicadas como desenho, decoração e construção de móveis, vitrais e escadarias.
Menos de uma década depois de criado, em 1934 o estilo aportou no Metropolitan Museum de Nova Iorque. A partir daí, ocorre uma expansão pelo mundo e ganha vida na forma de objetos de adorno, fachadas de edifícios e residências, obras de arte, cinema, moda e joias. No Brasil, aportou no Rio de Janeiro, envolvendo a Estação Central do Brasil, o Cristo Redentor e o Teatro Carlos Gomes, entre os exemplos mais conhecidos.
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