O Brasil no compasso do quatro |
2014 . Ano 10 . Edição 79 - 23/05/2014 Sete acontecimentos históricos cruciais dos últimos 70 anos, todos ocorridos em anos terminados em 4 e relembrados em 2014 por força de aniversários redondos, mostram uma longa caminhada do país rumo à institucionalização da democracia e à consolidação de um processo de desenvolvimento econômico com inclusão social. Com avanços e recuos, mas com o olhar apontado para a esperança de liberdade, igualdade e prosperidade 2 Em 1954, na ocasião do suicídio de Getúlio Vargas, que, à beira de ser deposto, fechou uma era trocando a vida por mais uma última intervenção determinante sobre o curso futuro da História no país; 3 Em 1964, quando uma aliança entre militares e civis conservadores toma o poder, instaurando um regime político autocrático e um modelo de desenvolvimento baseado na centralização econômica; 4 Em 1974, a oposição obtém uma vitória eleitoral esmagadora nos principais estados do país, obrigando o regime militar a iniciar um processo de abertura política rumo à futura redemocratização; 5 Em 1984, as multidões vão às ruas para exigir a redemocratização imediata e a eleição direta do presidente da República, a campanha das “Diretas Já”, representando o esgotamento de um regime já em crise econômica profunda; 6 Em 1994, quando é lançado o Plano Real, estancando a inflação e instaurando um novo modelo econômico baseado na institucionalização da estabilidade interna e na integração ao mercado global; 7 Em 2004, quando a renda do brasileiro começou a crescer e a pobreza a cair continuamente, ano após ano, abrindo um decênio marcado pela ascensão de uma nova classe média, resultante da distribuição das riquezas combinada a melhores oportunidades de emprego; 8 Em 2014, o que está por vir? No ano em que completa meio século, o Ipea investe em um projeto prioritário voltado a apontar possíveis rumos para as novas transformações exigidas pelo país para a próxima década. Um novo ciclo da economia mundial começa em 1944. Até então, a crise de 1929 tinha deixado cicatrizes profundas, a dívida internacional estava insolúvel devido ao acordo de Versailles e a “ameaça comunista” se aproximava do Ocidente. Em meio a esse cenário, no momento em que a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim, os Estados Unidos organizaram uma conferência com as nações aliadas, realizada no hotel Bretton Woods, perto de Washington, a fim de decidir um caminho para a economia internacional, então acéfala.
Embora 44 países participassem da conferência, os debates se polarizaram em dois planos econômicos: o International Stabilization Fund, ou Plano White, assim chamado em referência ao seu idealizador, Harry Dexter White, assistente do secretário do Tesouro dos Estados Unidos, e o Proposal for an International Clearing Union, conhecido por Plano Keynes, formulado pelo economista britânico John Keynes. Os dois planos baseavam- se em mecanismos de mercado e na noção de propriedade privada. Idealizaram um sistema internacional de pagamentos que permitisse haver um comércio internacional sem o medo de desvalorizações monetárias repentinas ou flutuações intensas das taxas de câmbio. No entanto, havia significativas diferenças entre o plano americano e o inglês, pois cada um defendia os interesses de seu país. Agosto de 1954 foi um mês de desgosto para o presidente Getúlio Vargas. A oposição urbana, organizada na UDN, o acossava no Congresso e pela imprensa, enquanto a elite agrária do PSD, que o apoiava, lavou as mãos. O PTB e os sindicatos já não o sustentavam e as greves eram cada vez mais frequentes. Empresas estrangeiras criticavam seu nacionalismo, cujo carro-chefe era a campanha “o petróleo é nosso”. O atentado ao jornalista Carlos Lacerda, coordenado pelo chefe da guarda pessoal de Getúlio, propiciara mais um escândalo. Um grupo de generais lançou um manifesto exigindo a sua renúncia. Foi a gota d’água.
No dia 24 de agosto, Getúlio trancou- se em seus aposentos no Palácio do Catete e tirou a vida com um tiro no peito. “Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano”, justifica Getúlio em sua carta- testamento. “Saio da vida para entrar na História”. Multidões foram às ruas em cortejo prestar honras ao “Pai dos Pobres”, como Getúlio gostava de ser chamado. A chegada da década de 1960 deflagrou tempos de extrema agitação em todo o mundo. Foram anos de efervescência e mobilização popular, o ápice da Guerra Fria. O Brasil se divide durante o governo de João Goulart, a radicalização política toma conta de ambos os lados. Um golpe de Estado, iniciado a 31 de março de 1964, perpetrado por uma aliança entre forças civis e militares, depõe o presidente e pende o poder, definitivamente, para o lado dos Estados Unidos, lançando o país em um regime que duraria 21 anos.
No campo econômico, por sua vez, o novo regime implementou um projeto que vinha sendo acalentado desde a década de 1930 pelos industriais, em aliança com uma facção do Exército e que tinha o Estado como principal locomotiva. Assim, já em 1964, o ministro do Planejamento, Roberto Campos, convidaria João Paulo dos Reis Velloso para criar o Ipea (até 1967, chamado de Epea, com “E” de Escritório) como parte desse projeto maior. Nos anos subsequentes, foram criadas estatais para os principais setores da economia. O controle da inflação com o crescimento acelerado permitiu o chamado “milagre brasileiro” (leia perfil de Albert Fishlow na página 72). O processo de substituição de importações foi aprofundado, criando-se um dos maiores parques industriais do planeta. Mas esse modelo escondia uma grande contradição: embora a taxa de pobreza diminuísse, os mais ricos eram os maiores beneficiários, com um forte aprofundamento da desigualdade social. Ao contrário do que se dizia para defender o regime, não era preciso “esperar o bolo crescer” para só depois distribuí-lo. Com a crise do petróleo desencadeada em 1973, o “milagre” econômico sofreu um forte golpe e o regime de 1964 iniciaria um processo de decadência. A oposição, agregada em um único partido, o MDB, decidiu apresentar o deputado Ulysses Guimarães como candidato à Presidência da República nas eleições indiretas de 1974. Em verdade, um anticandidato, posto que o colégio eleitoral, controlado pelos militares, estava predestinado a “eleger” o general Ernesto Geisel. Mas a candidatura permitiu que Ulysses percorresse o Brasil pregando a redemocratização. A crise econômica tinha tomado conta do Brasil e o governo do general Figueiredo vinha sendo humilhado diariamente pela ingerência dos técnicos do FMI em nossas contas internas, quando um dos líderes da oposição, o senador Teotônio Vilela, propôs a deflagração de movimento em prol das eleições diretas para a Presidência da República como a melhor maneira de repor a democracia. A mensagem foi materializada na forma de uma emenda constitucional.
As primeiras manifestações ocorreram em 1983. Mas, entre janeiro e maio de 1984, o Movimento das Diretas Já tomou conta das ruas. Naquele período, foram realizados 35 grandes comícios em todo o país. O comício do Rio de Janeiro teria levado um milhão de pessoas às ruas; o de São Paulo, cerca de 1,5 milhão. A emenda acabaria rejeitada em votação no Congresso. Mas o movimento pavimentaria o caminho para que um dos líderes da oposição, Tancredo Neves, legitimasse uma aliança com setores do antigo regime – dentre eles José Sarney, então presidente do PDS – para concorrer à Presidência em eleição indireta, em 1985. Assim terminaria o ciclo iniciado em 1964. Até 1993, a inflação vencera todos os programas econômicos tentados por diversos governos, invariavelmente com congelamentos de preços. Desequilíbrios internos, ventos desfavoráveis no mercado internacional e incertezas políticas fomentavam a situação catastrófica da economia brasileira. O Brasil detinha inflação superior a 2.000% ao ano. Foi em meio a esse caos, durante o curto governo de Itamar Franco, que surgiu o Plano Real, que, sem congelar os preços em geral, conseguiu estabilizá-los de forma duradoura com intervenções no câmbio e alta dos juros. Desde o impacto inicial da estabilização sobre as taxas de pobreza extrema e moderada, estas permaneceram praticamente estagnadas ao longo de uma década segundo as mais variadas linhas e metodologias. De 2001 a 2003, a desigualdade começou a ceder, mas o bolo da renda diminuiu e a pobreza não caiu. Foi a partir de 2004 que o Brasil passou a registrar, ano após ano, quedas fortes e ininterruptas das taxas de pobreza, devidas, em proporções iguais, ao crescimento médio da renda e à melhora contínua de sua distribuição em favor da base da pirâmide social. Já são dez anos de demonstrações sucessivas da possibilidade de aliar o crescimento do bolo com sua concomitante divisão em partes mais justas.
Políticas sociais como o Bolsa Família, lançado em novembro de 2003, no primeiro ano do governo Lula, contribuíram de forma significativa. A convergência demográfica para famílias menores, mais intensa entre as mais pobres, também ajudou. Contudo, o principal motor foi a expansão do acesso a melhores empregos, com carteira assinada e rendimentos mais altos e estáveis, sustentados com melhorias estruturais, também contínuas, da escolaridade média e de sua distribuição entre a população. Nos últimos 50 anos, desde a sua fundação, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) vem cumprindo relevante papel nessa longa caminhada histórica. Desde suas contribuições para planos que culminaram no “milagre econômico brasileiro”, passando por reiterados gritos de alerta sobre o aprofundamento das desigualdades sociais que o acompanhou, até as pesquisas e propostas recentes para acelerar a inclusão dos brasileiros no mercado de trabalho e a divisão do bolo das riquezas nacionais. Em 2014, o instituto celebra seu Jubileu de Ouro. E o relógio histórico das transformações brasileiras, voltará a bater? |