Congresso está legislando mais |
2015 . Ano 12 . Edição 84 - 16/10/2015
Movimento coincide com queda gradativa do número de Medidas Provisórias e regimes de urgência apresentados pela Presidência da República Wilson Santos Estudo do Ipea mostra que, nos últimos dez anos, houve uma redução drástica do percentual de leis de iniciativa do Poder Executivo, principalmente as chamadas Medidas Provisórias (MPs) e leis de caráter de urgência. Por consequência, é cada vez maior a participação do Poder Legislativo nas principais decisões do país. Da promulgação da Constituição (1988) até 2004 prevaleceu, no Poder Executivo, o uso desses instrumentos legislativos (as MPs e as leis em regime de urgência), segundo a pesquisa Processo legislativo: mudanças recentes e desafios, do Ipea. Entre 1989 e 2004 (governos José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e primeira metade do governo Luiz Inácio Lula da Silva), cerca de 60% das leis aprovadas pelo Congresso Nacional tinham origem na Presidência da República (os outros 40% eram leis de origem da Câmara, Senado ou de iniciativas populares). A partir de 2005, houve uma tendência de queda gradativa no percentual de MPs e leis em regime de urgência expedidas pela Presidência em comparação com as leis de iniciativa do Congresso. Já a partir de 2008 (segunda metade do governo Lula e, em seguida, do governo Dilma Rousseff), conforme o estudo do Ipea, a proporção de MPs e leis em regime de urgência passou a ser de 30% do total de leis aprovadas pelo Congresso, em média. “Essa queda foi em decorrência não apenas da menor quantidade de leis presidenciais, mas,principalmente, de maior quantidade de leis originadas no Congresso”, aponta o estudo. A pesquisa toma como base as chamadas leis não orçamentárias, aquelas que não tratam diretamente de gastos públicos. Célio Azevedo Em vários momentos da história política brasileira, como no último ano do governo Sarney (1990), nos anos da era FHC e nos primeiros anos do governo Lula (2003 e 2004), a governabilidade foi calcada, em boa parte, nas chamadas Medidas Provisórias. As MPs, na prática, são determinações do Presidente da República que a Câmara e o Senado são “convidados” a chancelar ou a, na pior (ou na melhor) das hipóteses, fazer alguns ajustes. As MPs são instrumentos de exceção em uma democracia. Entretanto, em vários episódios, foram utilizadas sem parcimônia. O trabalho do Ipea mostra que o excesso de medidas provisórias já não é tão comum. De acordo com a pesquisa, houve diminuição das medidas provisórias e também dos projetos de lei de origem do Executivo com regime de urgência, que tramitaram na Câmara e no Senado. Assim, o Congresso passou a exercer papel mais ativo. Além disso, o Congresso também ganhou maior força na definiçãoda chamada agenda legislativa, que passou a ser com iniciativas do Poder Executivo. Arquivo Senado Wilson Dias Agência Brasil Ricardo Stuckert Instituto Lula Apesar disso, esse maior “protagonismo” do Congresso não chega a refletir maior qualidade das leis elaboradas pela Câmara e Senado. O estudo mostra que cerca de 47% da produção parlamentar, nos últimos oito anos, trata de projetos de lei ligados a homenagens ou à criação de datas. Algo tido como secundário dentro do processo legislativo. Na prática, as MPs são vistas como uma espécie de “puxadinho legislativo”. Isso porque o trâmite normal de um projeto de lei (PL) é encurtado com a expedição dos pedidos de urgência e das MPs. Fazendo-se uma alusão simples, os PLs podem ser considerados cidadãos comuns em uma fila de banco. E os PLs com urgência ou as MPs estão para o processo legislativo como idosos e portadores de deficiência em uma fila bancária. O problema, conforme especialistas, é que nem sempre as MPs ou os PLs com urgência têm as mesmas “necessidades” que um idoso ou portador de deficiência. Números do Portal da Legislação do Palácio do Planalto mostram que o governo José Sarney editou uma média de 5,9 MPs por mês; Fernando Collor, 2,9; Itamar Franco, 4,2; Fernando Henrique Cardoso, 3,1; Lula, 3,4 e Dilma (até 2014), 2,4. A média inclui apenas as medidas provisórias de caráter não orçamentário. Outra mudança de comportamento diz respeito ao volume de leis de origem da Presidência da República que passaram a cumprir todo o rito de análise do Congresso (análise em Plenário e comissões – veja box). Se, por um lado, 50% das leis expedidas pelo Executivo ainda são medidas provisórias, por outro, a proporção de PLs de caráter de urgência expedidos pelo Executivo caiu de uma média de 28,7%, entre os anos 1995 e 2002, para 13,8%, entre os anos 2007 e 2014. Assim, a proporção de projetos de lei da Presidência da República obrigados a passar pelo rito normal de tramitação aumentou de uma média de 9,8%, entre 1995 e 2002, para 29,1%, nos últimos oito anos. Gustavo Lima / Câmara dos Deputados “A medida provisória e a urgência, principalmente a regimental, foram usadas intensamente na aprovação da agenda do Executivo, levando a forte dominância presidencial na produção legislativa e ao papel secundário, até mesmo subordinado, das comissões permanentes”, aponta o estudo. “Existia um padrão até o início dos anos 2000. Mas a partir de 2004 a coisa mudou muito”, afirmou o técnico de Planejamento e Pesquisa responsável pelo estudo do Ipea, Acir Almeida. Segundo ele, a comparação entre a média de medidas provisórias entre os dois mandados de FHC e os últimos oito anos dá a dimensão mais sensível destas mudanças. “Existe uma hipótese preliminar: o Executivo perdeu poder de agenda, o poder de definir a agenda legislativa. E isso implica uma dificuldade maior de realização de acordos dentro da coalizão de governo e, por conseguinte, de controle da agenda legislativa”, diz Almeida. “Ou seja, uma coalizão mais coesa tem mais facilidade de delegar ao chefe do Executivo o poder de legislar, de chegar e determinar a agenda legislativa, dizer o que os parlamentares vão decidir e quando vão decidir”, complementou o pesquisador. Para alguns deputados federais, no entanto, a redução da proporção das Medidas Provisórias aprovadas pelo Congresso é fruto de uma redução de poder do Executivo nos últimos anos. Em seu 11º mandato, o decano da Câmara dos Deputados, Miro Teixeira (Pros-RJ), afirma que os números, por si só, não explicam essa maior participação da Câmara e do Senado na produção legislativa nos últimos anos. Ele aponta duas questões sintomáticas para essa redução de poder do Executivo. Na opinião de Teixeira, a base do governo ficou mais heterogênea após o primeiro mandato do governo Lula. Além disso, ele ressaltou que a aprovação, em 2001, da Emenda Constitucional nº 32, que proibiu a reedição de MPs e impôs um rito sumário para sua aprovação, restaurando as prerrogativas do Congresso. Agência Câmara “Os números dão um indicativo, mas é bom lembrar que Fernando Henrique foi eleito, em dois mandatos, em primeiro turno. E ele chegou aqui com uma maioria ampla. Isso facilitava o processo de aprovação de leis do Executivo”, disse Teixeira. “Já Lula e Dilma foram eleitos em segundo turno e isso, obviamente, enfraquece o governo, dificulta a formação de uma base de coalizão. Além disso, também devemos nos lembrar de que, nos últimos anos, o governo tem se utilizado de uma cooptação de parlamentares, não de coalizão de parlamentares. A coalizão é com base em ideias, em ideais. A cooptação, não. A cooptação é feita com pensamentos em cargos. Agora, muito dessa cooptação foi fruto da base de origem heterogênea que começou a ser formada na era Lula”, critica Teixeira. “Logicamente que, nos últimos anos, houve uma dificuldade maior de tramitação de matérias de interesse do governo, mas isso é fruto de uma base cada vez mais plural”, reconhece o atual líder do governo, deputado José Guimarães (PT-CE). Já o deputado Nilson Leitão (PSDBMT) fez uma análise mais crítica das dificuldades que o governo tem tido de definir uma agenda legislativa. “Acho que o governo se perdeu nos últimos anos. Querendo ou não, durante a era FHC, existia um projeto de governo muito bem definido, calcado no combate à inflação e na austeridade fiscal. Era uma base governista em que as negociações eram melhores. Mas, agora, a base do governo é totalmente desequilibrada e isso dificulta, sem dúvida nenhuma, a aprovação de medidas de interesse do Executivo”, opina o parlamentar. Gustavo Lima - Câmara dos Deputados No entanto, esse maior protagonismo legislativo, conforme a pesquisa, tem como grande desafio a qualidade das propostas que passaram a ser aprovadas pela Câmara. O estudo aponta, por exemplo, um dado curioso: nos últimos oito anos (2007-2014), houve um crescimento expressivo na média anual de projetos de lei que prestam homenagens, instituem datas simbólicas ou comemorativas, etc. Somente para efeito ilustrativo, entre 1995 e 2002, o Congresso apresentava uma média de 6,3 projetos relacionados a homenagens e datas comemorativas; entre 2007 e 2014, a média chegou a 38,1 projetos por ano. Pelo estudo, 47% da produção parlamentar, nos últimos oito anos, tratavam apenas das chamadas homenagens. No ano passado, é bom frisar, a Câmara aprovou projetos relacionados ao Dia da Bíblia, Dia Nacional do Reggae, e fez homenagens ao ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela, e ao locutor esportivo Luciano do Vale, ambos mortos em 2014. Outra iniciativa polêmica é o Projeto de Lei nº 3.540, que instituiu o Dia Nacional do Humor, a ser comemorado no dia 12 de abril. De autoria do deputado Raimundo Gomes de Matos (PSDB-CE), o projeto foi uma homenagem ao humorista Chico Anysio, que morreu no início de 2012. Foi sancionado no início do ano pela presidente Dilma Rousseff. O deputado justificou, assim, o seu projeto: “A comédia representa uma crítica aos atos ridículos das pessoas em sociedade ou seus maus costumes e segue três vertentes: a política, a alegórica e a moral. A tragicomédia é a transição da comédia para o drama. Representa personagens ilustres ou heróis, praticando atos irrisórios”. Apesar disso, segundo o estudo, também houve aumento substancial na quantidade de leis que instituem direitos e deveres com amplo alcance na sociedade. A média anual dessas leis passou de 21,4 propostas por ano, entre os anos de 1995 a 2002, para 32,4 matérias entre 2007 e 2014. Um crescimento de 51,5%. Entre os exemplos citados, estão as leis que instituíram o Sistema de Consórcios (Lei nº 11.795/2008), a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei nº 12.187/2009), o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) e a Política Nacional de Irrigação (Lei nº 12.787/2013). Gustavo Lima / Câmara dos Deputados “Em suma, o recente aumento na produção legal de origem parlamentar inclui tanto leis muito relevantes para o país quanto leis de importância questionável. Se, e em que medida, a produção dessas últimas implica custo de oportunidade para a produção das primeiras é uma questão em aberto. Por isso, não obstante os exemplos mencionados, ao Congresso se coloca o desafio de não preterir deliberações sobre políticas públicas de interesse difuso em favor da produção de legislação de natureza particularista ou simbólica”, explica o estudo. A pesquisa também mostra outro dado interessante no que se refere à produtividade parlamentar: houve um aumento progressivo na quantidade anual de requerimento de realização de audiências públicas na Câmara. Entre os biênios 2001-2002 e 2013-2014, a média anual passou de 538 requerimentos para 1.240. Um aumento de 131%. O estudo não tem dados sobre audiências públicas anteriores a 2001. “Enfim, se está em consolidação um novo padrão legislativo, com o Congresso, por meio das suas comissões permanentes, assumindo o protagonismo na produção de leis, faz-se necessário criar mecanismos que inibam a prevalência de interesses particularistas na definição da agenda e aprimorar a sua capacidade de produzir informações próprias sobre políticas públicas”, complementa o estudo.
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