2004. Ano 1 . Edição 2 - 1/9/2004
Parceria entre diplomacia e iniciativa privada O trabalho conjunto já trouxe vitórias no setor externo. Mas ainda há problemas a resolver.
Por Maria Helena Tachinardi, de São Paulo
Colheita de algodão: este ano o Brasil deverá exportar três vezes mais do que em 2003, cerca de 450 mil toneladas
Acostumado a saborear vitórias no esporte, onde a organização, a disciplina, o treino e a perseverança são fundamentais para bons resultados, o Brasil colheu recentemente dois frutos de um trabalho organizado e paciente de aposta contra a política de subsídios agrícolas dos EUA e da União Européia (UE). Ganhou dois casos na Organização Mundial do Comércio (OMC) - o do algodão e o do açúcar -, graças também ao investimento e pesquisa do setor privado para assessorar os negociadores brasileiros.
O agronegócio mostrou-se maduro ao investir milhões de dólares na contratação de advogados e economistas americanos para defender seus interesses relativos às exportações de algodão e açúcar. Nunca o Brasil esteve envolvido em tantas negociações internacionais ao mesmo tempo. Pela primeira vez, também, o setor privado expressou-se de forma estruturada para subsidiar as negociações do governo. "Negociar é ter capacidade de formular. O Brasil era bom na formulação de grandes linhas, mas nos detalhes a resposta dos setores produtivos era modesta. Houve um progresso importante", diz o embaixador Clodoaldo Hugueney Filho, subsecretário-geral de Assuntos Econômicos e Tecnológicos do Itamaraty.
O resultado positivo, até agora, dos dois painéis da OMC, rompe com a imagem de uma agricultura dependente dos subsídios do Estado, pouco competitiva e tímida nas negociações externas. Os produtores de cana, que na década de 1980 receberam polpudos incentivos para fazer o Proálcool, e que pertenciam a um setor regulamentado pelo Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), hoje, regra geral, jogam dentro das leis de mercado e contribuem para a liderança das exportações brasileiras em seu setor.
Ranking O Brasil é o terceiro maior exportador agrícola mundial, atrás apenas dos EUA e da União Européia (UE-15). Levantamento do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Ícone) mostra que no período 1990-2003 as taxas anuais de crescimento dos principais produtos agrícolas exportados pelo Brasil foram superiores às mundiais: soja em grão apresentou crescimento de 16,9%, carne de frango de 13,1%, açúcar de 17%, carne suína de 27,2%, milho de 53% e a elevação das vendas externas de algodão foi de 11,7% (leia a tabela na página seguinte). O país é o primeiro exportador mundial de soja em grão, açúcar, carne bovina, café, suco de laranja e tabaco. É o segundo maior em vendas de farelo de soja, frango e óleo de soja, e o quarto maior fornecedor de carne suína, milho e algodão.
Também é indicativo de competitividade o superávit comercial do Brasil no agronegócio: em 2003, ele foi de 17,7 bilhões de dólares, o maior do mundo, refletindo exportações de 21,2 bilhões de dólares e importações de 3,5 bilhões de dólares, segundo definição de agricultura da OMC, que é mais limitada do que a utilizada pelo Ministério da Agricultura e não abrange produtos do setor de pesca, por exemplo.
Outra atitude que indica organização foi tomada há quatro anos, em Seattle. Se um dia a história do painel do açúcar for escrita em detalhes, terá de mencionar que a fracassada reunião ministerial da OMC, em dezembro de 1999, teve um lado bem-sucedido. Seattle foi palco de uma aliança fundamental construída à margem da rodada comercial. Em meio aos protestos contra a OMC e a globalização, nasceu a Global Alliance for Sugar Reform (Aliança Global para a Reforma do Setor Açucareiro), da qual participam Brasil, Austrália, Tailândia, Índia, África do Sul, Colômbia, Guatemala e Canadá. O Chile e alguns outros países da América Central são representados pela Guatemala. Três membros da Global Alliance entraram juntos com o pedido de painel na OMC contra a União Européia - Brasil, Austrália e Tailândia.
Eduardo Carvalho, presidente da União da Agroindústria Canavieira do Estado de São Paulo (Unica), é um dos fundadores da Global Alliance, e reuniu-se várias vezes em Genebra com representantes da Austrália e da Tailândia para montar a defesa do Brasil. Ele vê duas lições do caso do açúcar. A primeira lição é a de que é preciso trabalhar muito. "Os diplomatas são eficientes mas são poucos. E a briga é de leão. Por isso temos de suplementar o trabalho deles." Segunda lição: "É preciso ter suporte jurídico adicional".
Tecnologia A decisão final sobre o painel do açúcar deverá sair em fevereiro ou março de 2005, depois de passar pelo Órgão de Apelação da OMC. "Tenho firme convicção de que não há probabilidade de mudar o entendimento do painel", diz Carvalho. Na Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) a expectativa também é otimista. Caso a condenação dos EUA seja confirmada, Washington deverá dizer, no prazo de 30 dias, se implementará as recomendações. "É o primeiro caso a desafiar a política agrícola de um país", diz Hélio Tollini, diretor executivo da Abrapa.
O algodão já sofreu um bocado. Na década de 1980 foi vítima da praga do bicudo. Na década de 1990 foi abalado com a redução a zero das tarifas de importação. Agora, segundo Tollini, uma causa defensável e uma ação legal com muitos recursos foram determinantes para o sucesso do seu caso junto à OMC. E esse ano o Brasil deverá exportar três vezes mais do que em 2003, cerca de 450 mil toneladas. Para que os negócios cresçam ainda mais é preciso abrir o mercado internacional e resolver o problema da logística. Enquanto isso não acontece, o setor melhora a sua competitividade frente ao produto americano subsidiado e fornece para o mercado externo um produto de boa qualidade. "Hoje usamos máquinas do tipo high volume instrument, que classificam as fibras. Na Ásia, eles sabem exatamente a procedência do algodão brasileiro. O código de barras fornece uma ficha do produto. Tudo tem de ser feito profissionalmente, temos de ser iguais ou melhores e competitivos em preço, pois sofremos a concorrência do algodão subsidiado", explica o diretor da Abrapa.
Além dos casos vitoriosos do algodão e do açúcar, há mais uma novidade na política comercial brasileira: a nova geografia do poder na OMC, que inclui o Brasil ao lado de quatro países-chave na Rodada de Doha: EUA, União Européia, Austrália e Índia. "Pela primeira vez depois da criação do Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio, substituído pela OMC), cinco países sentam-se para negociar, dois deles do G-20", diz Hugueney. Na Rodada Uruguai, a composição de forças girava em torno dos interesses do chamado Quad - UE, EUA, Japão e Canadá. Nesse ano, o fato de o Brasil ser membro do NG-5 (grupo informal dos cinco países mais influentes na Rodada de Doha) pesou na criação do G-20, o grupo de países em desenvolvimento que luta pelo fim dos subsídios agrícolas. Criado às vésperas da fracassada reunião ministerial da OMC em Cancún, em setembro do ano passado, o G-20 acaba de completar um ano e ganhou um site no Brasil (www.g-20.mre.gov.br).
Apoio técnico As propostas de negociação do G-20 na área agrícola contaram com apoio técnico do Ícone. O Instituto, criado há cerca de um ano, é outra prova da evolução do agronegócio brasileiro. Desenvolve estudos e pesquisas aplicadas na área de comércio internacional e dá suporte técnico ao governo nas negociações. Os mantenedores do Icone são as entidades de classe das carnes bovina (Abiec), suína (Abipecs), de frango (Abef), do açúcar e álcool (Unica), do agribusiness (Abag), de óleos vegetais (Abiove), a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a associação das tradings (Abece).
Se por um lado as estratégias negociadoras do Brasil na OMC parecem refletir sintonia entre o governo e o setor privado, há discordâncias de fundo com relação à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e ao acordo birregional União Européia-Mercosul, além de outras negociações que são prioritárias para o Itamaraty como os acordos com os sul-americanos e com grandes países em desenvolvimento, como Índia, China e África do Sul. É por isso que a agenda de comércio traz ainda mais desafios para a inserção internacional do País.
"Preocupa que o Brasil esteja encontrando dificuldade de se mover nos acordos regionais (Alca e UE-Mercosul), tendência inescapável em termos de inserção internacional", diz Sandra Rios, consultora da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e membro da Coalizão Empresarial Brasileira (CEB), que coordena a participação do setor privado em negociações internacionais. "Com os países desenvolvidos temos o problema de agendas conflitantes, pois nossos interesses estão no núcleo duro do protecionismo europeu e americano. Eles têm interesse em áreas em que o Brasil é mais reticente: compras governamentais, regras em investimentos e serviços. E com os países em desenvolvimento, que representam o novo foco da política externa, não conseguimos avançar uma agenda econômica. Os acordos são de pouca relevância, limitados, com poucos produtos, como o assinado com o México, que só é relevante na área automotiva", diz. O acordo de comércio com a Comunidade Andina de Nações (CAN) exigiu que o Brasil abrisse mão do acesso a mercados. O Mercosul também negocia com a Índia, mas a expectativa é de poucos resultados concretos, pois a margem de preferência para um conjunto limitado de produtos será de 10% a 20%. "O formato de Acordo de Alcance Parcial, com preferências fixas, não leva ao livre comércio. Quando se começa a negociar produto a produto dessa forma, os interesses defensivos se manifestam", diz Rios.
Acordos Entre os desafios da agenda de política comercial brasileira está a necessidade de definir prioridades. É o que está no documento da CEB Articulação e Coordenação de Objetivos para o Sucesso das Negociações Comerciais, enviado ao chanceler Celso Amorim em junho. Um ponto relevante, na avaliação dos empresários, é o "papel dos critérios econômicos nas negociações", que não estaria sendo levado em conta tendo em vista "a excessiva complexidade e reduzida ambição dos acordos com países em desenvolvimento, a dificuldades de se definir uma estratégia do Mercosul com parceiros extrabloco e a precipitação na assinatura de acordos antes de serem concluídos", diz Sandra Rios. Ela critica o acordo com a CAN: "É confuso, com muitos cronogramas diferentes e regras de origem associadas a quotas. É um acordo com pouco critério econômico e de difícil operação".
"Talvez o fato de a Alca estar atrasada não faça avançar o acordo UE-Mercosul", diz Eduardo Carvalho, que critica os acordos Sul-Sul, pois países como China e Índia (membros do G-20) "não são abertos para nós". Marcos Jank, professor da FEA-USP e presidente do Ícone, vê contradições na política comercial voltada para o relacionamento com os grandes países asiáticos. "O estágio mais básico de um processo integrativo é a zona de livre comércio. Pergunta-se: estaria a indústria manufatureira preparada para a entrada dos produtos chineses livres de tarifas? Estaria a agricultura da China e da Índia preparada para competir com as commodities brasileiras? Levantamentos recentes da Fiesp indicam que os produtos ultrabaratos da China podem causar danos bem maiores à nossa indústria do que a suposta concorrência dos países desenvolvidos. E o caso das restrições sanitárias impostas sobre a soja brasileira mostra que esses países só compram nos momentos em que a demanda supera a oferta de seus mais de 600 milhões de produtores", observa Jank. Na verdade a política externa para os países asiáticos tem um objetivo mais amplo, o de formar um grupo político e econômico para atuar de maneira conjunta no mundo da diplomacia e do comércio exterior.
Diversificação Hugueney define o que ele considera como desafios da agenda comercial externa do Brasil: "A economia brasileira está crescendo e as exportações industriais recuperando-se. O esforço na área de negociações comerciais é um coadjuvante. O desafio hoje está nos mercados não tradicionais dos países em desenvolvimento. Não se pode olhar só para os EUA, a Europa e o Japão. Uma parte da performance exportadora do Brasil se explica pela diversificação de mercados". Quando entrou na OMC a China aplicava uma tarifa média aos produtos importados de 7% a 8% inferior à do Brasil, cuja taxa aplicada é de cerca de 12,5%. "A China cresce há décadas, e a Índia, há pelo menos uma década. São mercados em expansão onde há um aumento geral de renda per capita".
Há um outro desafio da agenda comercial brasileira: resolver os problemas do Mercosul, cada vez mais desacreditado por parte dos empresários. Os atritos constantes entre o Brasil e a Argentina e o discurso do governo de aprofundamento do bloco cansaram. "A instabilidade no comércio bilateral é um incômodo crescente", diz Sandra Rios. Como se vê, no front externo a agenda está cheia.
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