Reformas - Universidade para todos |
2005. Ano 2 . Edição 8 - 1/3/2005 O debate em torno da proposta do governo para a reforma do ensino superior no país começa a se acirrar. Há muitos interesses em jogo e o embate promete ser duro.
Em protesto contra a reforma universitária, estudantes invadem o prédio do Conselho Nacional de Educação, em Brasília O governo Lula resolveu pôr a mão num vespeiro ao apresentar um projeto de reforma do modelo da universidade brasileira, instituição que envolve uma comunidade de quatro milhões de pessoas, entre alunos, professores e funcionários. A idéia de mudança mexe com as expectativas e sonhos de toda a população, e não só isso. Afeta diretamente a estratégia de futuro para o país. É um terreno pantanoso, que só foi revolvido duas vezes no século passado, com as reformas de 1931 e 1968, ambas durante períodos de autoritarismo. Desta vez, a proposta de mudança é feita com base democrática e dela podem participar todos os segmentos interessados, uma vez que o caminho escolhido pelo Ministério da Educação (MEC) foi o de máxima exposição ao abrir debates sobre o tema durante o ano passado. Também foram adotadas recentemente algumas medidas que criam uma espécie de ponte para que seja possível a implementação do projeto, depois de aprovado. Após o período de consulta, os técnicos do MEC vão trabalhar na redação de um projeto de lei que passará pela Casa Civil para, só então, chegar ao Congresso Nacional, quem sabe até o final do ano. Depois disso, começa o longo caminho da tramitação legislativa. Entre as novidades estampadas na proposta está a reserva de parte das vagas em universidades federais para estudantes que cursaram escolas públicas e também para minorias como negros e indígenas, para atacar o apartheid social que deixa alunos com menos renda mais distantes do ensino superior gratuito e de qualidade. A dotação dos recursos para as instituições federais ficará na casa de 75% dos investimentos do MEC em educação. Elas também ganham mais autonomia administrativa para gerir verbas e alocá-las de acordo com suas prioridades. Os pisos salariais são mantidos, mas fica autorizada a diferenciação de remuneração de professores e funcionários, de acordo com critérios de méritos especificados para cada função. Reitores poderão ser eleitos diretamente. No campo dos estabelecimentos privados de ensino, que já respondem por 71% das matrículas nos cursos de graduação, o tom é de regulação. Será exigido credenciamento periódico das mantenedoras, que também serão submetidas, assim como as públicas - federais, estaduais ou municipais -, a certos controles da sociedade. Ele avisa que existem quatro aspectos dos quais o ministério não pretende se desviar. São eles a autonomia administrativa das universidades federais, a regulamentação do funcionamento das instituições privadas de ensino, a defesa do acesso e da permanência dos estudantes marginalizados e a transparência da gestão. "O que puder ser incluído nesses pontos, na medida do possível, será aceito", diz, referindo-se às sugestões e críticas que não cessam desde a apresentação do projeto. Aliás, bem mais críticas do que sugestões ou apoio. "A decisão de finalmente discutir o assunto é corajosa e o formato escolhido é participativo, isso é louvável", afirma a professora Ana Lúcia Almeida Gazzola, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ociosidade A reforma universitária chega em um momento de crise nas universidades federais, marcadas pelo desinvestimento dos últimos dez anos, e do setor privado, com problemas de vagas ociosas. Em 1970, as universidades públicas asseguravam 50% das 425 mil matrículas existentes, mas essa fatia caiu para apenas 29% em 2003, em razão do crescimento da rede privada de estabelecimentos de ensino superior a partir de 1994. Mas o segmento particular acabou crescendo acima da capacidade do mercado, especialmente em anos de arrocho econômico e, assim, sobram hoje vagas ociosas. Em 1990, as posições não ocupadas nos cursos eram 18,6% do total no caso das instituições públicas e 19,2% nas privadas. Em 2003, estavam ociosas 42,2% das vagas das universidades particulares, enquanto nas públicas a ociosidade era de apenas 5%. "A reforma altera apenas algumas frentes, mas não cria um Sistema Nacional de Educação Superior, como deveria ser", afirma. Como exemplo de projeto construído em conjunto com a sociedade e que teve tramitação e aprovação relativamente tranqüila no Congresso Nacional, ela cita o Fundo de Manutenção e de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), promulgado em 1996, e que destina uma parcela da arrecadação federal para estados e municípios investirem nos salários de professores (60%) e em infra-estrutura e desenvolvimento (40%). "No caso da computação, por exemplo, há aqueles interessados em aprender as técnicas de programação, e existem vagas no mercado para eles; e há aqueles que preferem avançar e entrar na ciência da computação", explica Durham. "Atualmente, os formandos vão trabalhar em carreiras e lugares muito distintos, por isso é preciso criar vários níveis e tipos de formação", completa. Para Gazzola, da Andifes, o aumento de verbas só será plenamente positivo se for acompanhado da autonomia da gestão do orçamento. "Hoje, eu preciso de autorização do MEC para mandar um professor para qualquer conferência no Brasil ou no exterior, a menos que ele consiga dinheiro da Capes ou do CNPq", conta. Ela se refere à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. "O que queremos é livrar a universidade das amarras da burocracia extrema de hoje para que ela possa fazer planos de 15, 20 anos em pesquisa e ensino, conforme suas características e alianças", declara Haddad. No campo da inclusão de alunos de minorias ou baixa renda, a professora acha que o projeto restringe a criatividade de mecanismos de inserção ao definir as cotas como instrumento único. A criação de cursos noturnos, por exemplo, é uma saída alternativa que, dependendo do caso, pode apresentar melhores resultados do que as cotas, segundo ela. O anteprojeto em questão apresenta uma curiosa e polêmica ferramenta que poderá ser utilizada pelo governo para levantar dinheiro e destiná-lo ao auxílio dos estudantes. Trata-se de uma loteria anual, a ser coordenada pela Caixa Econômica Federal (CEF), e que ainda não está regulamentada nem foi detalhada. "A criação da loteria é deseducadora, pois estimula os jogos de azar e, além disso, é totalmente insuficiente. Precisamos de bons alojamentos, restaurantes universitários, bibliotecas, mas isso não vai ser feito com as verbas irrisórias de uma simples extração de loteria", avalia o professor Roberto Leher, diretor do Sindicato Nacional dos Docentes (Andes) e presidente da Coordenação Nacional de Luta contra a Reforma Universitária (Conlute). Cátedras A proposta de eleição direta de reitores das federais toca em pontos nevrálgicos de interesses corporativos, especialmente dos professores universitários, e cria tanta polêmica quanto a ocorrida em 1968, quando a ditadura militar determinou o fim das cátedras vitalícias nas universidades e criou a estrutura departamental, seguindo o modelo norte-americano. A mudança, dizem os mais críticos, colocaria em risco a qualidade do planejamento da pesquisa e da difusão do saber, uma vez que seriam as próprias universidades as responsáveis por determinar as regras das eleições, o que, dependendo da situação, poderia levar um funcionário de nível técnico a ser escolhido. "Só pode exercer a função de reitor quem tem capacidade comprovada para isso; existem outras formas de gerar muito mais democracia interna do que a eleição direta", opina Durham. Segundo ela, uma opção pode ser a criação de colegiados, responsáveis por decisões específicas e dos quais fariam parte apenas os setores realmente envolvidos nas questões a serem decididas. Um exemplo seriam os colegiados para decidir salários e questões organizacionais, formados por todos os segmentos da universidade, diferentemente de um colegiado para decidir aspectos curriculares, que não precisam da presença de funcionários do apoio técnico. Criado como forma de incluir a comunidade nos trabalhos das universidades, o item vem sendo tachado de intervencionista. É comum ouvir, nos debates sobre a reforma, comentários sobre uma intenção do governo de combater o elitismo da universidade. "Sabemos que as universidades são campos da elite filosófica e técnica, mas acreditamos que elas precisam estar mais permeadas de outros setores da sociedade. É preciso oxigenar essas elites", argumentou Tarso Genro, ministro da Educação, em um dos eventos sobre o tema no final de fevereiro. "A função social da universidade é prestar um serviço de ensino de alto nível e realizar pesquisas de excelência e, por isso, deve ser avaliada com esses critérios, e não por um tipo de relevância social diferente e que não é claro", afirma a presidente da Andifes. O texto prevê um maior controle e as entidades serão avaliadas periodicamente, embora não explicite qual será a freqüência, a fiscalização ou a prestação de contas. "O controle previsto não é constitucional", afirma o professor Gabriel Mário Rodrigues, presidente da Associação Brasileira das Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes) e reitor da Universidade Anhembi Morumbi. "É o sistema de avaliação que tem de avaliar", completa. O ministro Genro rebate a afirmação dizendo que a educação é um bem público e que a Constituição autoriza o monitoramento direto da prestação desse tipo de serviço, uma vez que o Estado repassa a companhias privadas o exercício da tarefa. O projeto delimita também a participação estrangeira no segmento educacional em 30%. Federalizar O ex-ministro da Educação Cristovam Buarque vai enviar sugestões ao MEC para complementar o anteprojeto, entre elas a proposta de que o texto da Reforma Universitária seja encaminhado ao Congresso Nacional em conjunto com o projeto do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). O Fundo é importante, pois garante recursos para o aprimoramento do ensino básico em todo o país. Um esboço do Fundeb, que repousa nos gabinetes do ministério, prevê o acréscimo de 4,3 bilhões de reais em quatro anos para serem aplicados na educação básica. "O ensino de nossas crianças precisa ser revolucionado, muito melhorado, porque senão fica sem valor uma universidade boa, sem alunos com um preparo suficiente", justifica Buarque. Num tom radical, ele até sugere que a educação básica seja, de alguma forma, "federalizada", por ser um assunto de Estado. Como amostra da situação de perigo em que se encontra a escola brasileira, ele citou a falta hoje de 400 mil professores de Matemática, Física, Biologia e Português na rede pública. O ensino fundamental ficou com 26% dos gastos federais em educação, enquanto a fatia da universidade foi de 62% em 2002. |