Sociedade - Longe do paraíso |
2006. Ano 3 . Edição 20 - 9/3/2006 A atual legislação de adoção prioriza a volta das crianças à família original, mas termina por condená-las a viver por longos anos em abrigos. Para solucionar esse dilema e criar um sistema único que agilize os processos, existem mais de 100 propostas tramitando na Câmara dos Deputados Por Lia Vasconcelos, de Brasília Cerca de 20 mil crianças e adolescentes vivem nos abrigos mantidos com recursos do governo federal. Deles, 58, 5% são meninos, 63% são negros e 61, 3% têm de 7 a 15 anos São duas realidades simultâneas que se encontram com uma freqüência muito menor do que a desejada:de um lado, milhares de crianças aptas para adoção;de outro, uma enorme lista de espera de casais ávidos por adotar. E cada vez que acontece um caso como o da recém- nascida achada em plena Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, no começo de fevereiro, o assunto volta à tona com toda a força. O interesse de dezenas de famílias em criar a menina de apenas dois meses, abandonada pela mãe dentro de um saco plástico, revela uma realidade perversa:a falta de conhecimento e de articulação impede que muitas crianças sejam adotadas no Brasil. Os desafios são grandes e um deles é descobrir o tamanho do problema. Não se sabe ao certo a quantidade de crianças em condições de serem adotadas nem o número de pessoas interessadas em adotá-las. Isso acontece porque o sistema de adoção funciona de forma descentralizada, o que praticamente impossibilita que uma criança do Mato Grosso seja acolhida por uma família do Rio Grande do Sul, por exemplo. A criação de um cadastro único e nacional seria o primeiro passo, mas para que ele funcione bem são necessários ajustes na legislação que rege o assunto: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o novo Código Civil. O processo de adoção tem de ser mais ágil, padronizado e preciso. O mais recente retrato dessa realidade, O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil, livro lançado em 2004 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), faz uma radiografia de 589 estabelecimentos em todo o país que recebem recursos da Secretaria de Assistência Social, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), a chamada Rede Sac. Ele mostra que nessas instituições vivem cerca de 20 mil crianças e adolescentes. Tomando-se os números principais, podese facilmente ver quem tem mais dificuldade para encontrar uma família. Dos que vivem nesses abrigos, 58, 5% são meninos, 63% são negros e 61, 3% têm de 7 a 15 anos . Mas quem imagina que os jovens e pequenos são órfãos ou estão abandonados engana-se, 87% têm família e, mais importante, 58, 2% mantêm vínculos com essas famílias. A grande maioria, portanto, está diante do paradoxo de ter uma família que, na prática, não tem condições de cuidar dela, em seu significado mais amplo, mas que, mesmo assim, é juridicamente responsável pelos filhos que vivem nos abrigos. Essa situação ambígua gera um grande problema. De acordo com o estudo, 46, 2% dessas crianças e adolescentes ficam de dois a dez anos no abrigo, mas apenas 10, 7% delas encontravam-se no momento da pesquisa, em 2003, judicialmente em condições de serem adotadas. O quadro que a pesquisa apresenta é revelador. " O livro mostra que não é verdade que os abrigos estejam abarrotados com crianças para adoção. A maioria tem família com a qual mantém vínculos. Estão lá porque são pobres. O que pudemos perceber é que muito do que o ECA prevê não acontece de fato", diz Enid Rocha Andrade Silva, coordenadora da pesquisa do Ipea e atualmente secretária adjunta da Secretaria Nacional de Articulação Social da Secretaria- Geral da Presidência da República. O estatuto prevê, por exemplo, que "o abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade". Entretanto, não foi isso que o estudo do Ipea verificou. "Os pais não abrem mão do poder familiar, mesmo não tendo condições de criar as crianças. A conseqüência é que elas envelhecem e entram numa faixa etária difícil para adoção", explica Silva. Como a legislação defende que os filhos sejam criados pelos pais ou por familiares, e somente depois de esgotadas essas possibilidades é que a adoção pode ser tentada, o tempo que essas crianças e adolescentes passam nas instituições é longo demais. As conseqüências podem ser graves. A criança corre o risco de ter seu desempenho cognitivo e a própria capacidade de convivência afetados. Num lugar em que a massificação é a tônica, em que os brinquedos, quando existem, são bens coletivos, a construção da individualidade fica comprometida. " No Brasil, há uma cultura de institucionalização. Muitos abrigos pegam a criança para cuidar e não entendem seu papel como intermediários. A criança não pode ficar esquecida lá", afirma Alexandre Valle dos Reis, assessor da subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). Fonte: Ipea/Diretoria de Estudos Sociais (2003) AlternativaPara evitar as seqüelas da permanência em abrigos, algumas instituições propuseram uma solução intermediária: o acolhimento. As crianças vivem em casas de outras famílias enquanto esperam que suas famílias originais recuperem as condições para recebê-las de volta. O Serviço Alternativo de Proteção Especial à Criança e ao Adolescente (Sapeca), da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura Municipal de Campinas, em São Paulo, já atendeu 46 crianças nos seus nove anos de funcionamento - quinze estão em acolhimento, dezesseis já retornaram à família natural, nove foram encaminhadas para adoção e seis voltaram ao abrigo. O período de acolhimento varia bastante, pois depende do tempo que a família de origem vai precisar para se reorganizar, mas Jane Valente, coordenadora do Sapeca, explica que eles tentam trabalhar com o prazo de um ano para crianças com até 5 anos de idade e vinte meses para as maiores de 5 anos. "Ajudamos a formar uma rede social em torno da família de origem. Localizamos os problemas, que podem ser financeiros, dependência química ou falta de moradia, e estabelecemos parcerias para que a família tenha acesso aos serviços que vão ajudá-la a reverter o quadro", esclarece Valente. A adoção acontece só quando a família não consegue se reestruturar, em último caso. O sucesso desse tipo de programa, na opinião de Cláudia Cabral, diretora executiva da organização não-governamental Terra dos Homens, depende de apoio psicossocial constante e sério. "O acompanhamento é feito durante o acolhimento e por cinco anos depois de a criança ter retornado à família de origem. É muito importante, durante e após o acolhimento, trabalhar o vínculo da criança tanto com a família de origem quanto com a acolhedora", diz Valente. Segundo ela, durante todo esse período, a criança participa do processo e eventualmente entende que é uma situação temporária.
Problemas A modalidade de acolhimento ainda está em fase de teste. A imensa maioria das crianças, porém, tem outra realidade e convive com duas grandes questões que atravancam o processo de adoção e contribuem de forma decisiva para mantê-las muito mais tempo do que deveriam nos abrigos. A primeira é que o perfil das crianças desejadas obedece sempre ao mesmo padrão: branca, do sexo feminino, com no máximo 2 anos de idade, sem problemas de saúde e sem irmãos, segundo informa a SEDH, ligada à Presidência da República. O problema é que apenas 3, 3% do total de meninos e meninas abrigados no Brasil atende a essas exigências, de acordo com a pesquisa feita pelo Ipea. O resultado é este que conhecemos: uma enorme fila de pais e um grande contingente de crianças esperando a adoção que não acontece. "É uma questão cultural que precisa começar a ser modificada", afirma Patrícia Saboya, senadora pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), do Ceará, e coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa da Criança e do Adolescente no Senado. Nesse cenário, cumprem papel fundamental os Grupos de Apoio à Adoção, formados, em geral, por pessoas que já adotaram ou querem adotar. Espalhados por todo o Brasil, esses grupos oferecem atendimento e orientação a pais e mães adotivos no processo de espera por uma criança e na etapa posterior à adoção. Eles buscam incentivar a adoção de crianças mais velhas ou com características diferenciadas. "A questão racial é um problema no Brasil, mas o principal obstáculo para adoção é a idade e os grupos de irmãos", esclarece Patrícia Lamego, coordenadora da Autoridade Central Administrativa Federal, órgão ligado à SEDH e instituído para dar cumprimento à Convenção de Haia - responsável pela regularização das adoções internacionais por meio da criação de normas básicas a serem cumpridas pelos 76 países signatários. Para Ana Angélica Campelo, gestora governamental do MDS e mãe de uma criança adotada, o Grupo de Apoio à Adoção foi determinante na preparação da família. " Já tínhamos uma filha, mas queríamos adotar. O grupo fez meu marido e eu percebermos que as crianças que mais precisavam de uma casa eram as mais velhas", conta Campelo. A atuação do grupo conseguiu que ela realizasse uma adoção com características inusitadas. Antes mesmo de o casal entrar na fila oficial de adoção, foi avisado sobre uma criança negra de quase 2 anos de idade, de outro estado, que não havia encontrado uma família interessada. Depois de algumas visitas à criança, o juiz concedeu a guarda e eles trouxeram Patrícia, hoje com 4 anos, para casa. O processo de adoção ainda não está totalmente terminado: falta a última audiência, que deve acontecer ainda neste semestre, para que a menina ganhe uma nova certidão de nascimento e passe a assinar Patrícia Campelo como seus pais e sua irmã mais velha, Clara. O que aconteceu com Campelo é muito raro. Fonte: Ipea/Diretoria de Estudos Sociais (2003)
"Como não havia famílias interessadas em Patrícia no seu estado de origem, a equipe técnica decidiu fazer uma busca ativa em outras cidades, mas isso não é muito freqüente", explica ela. Por isso, uma das orientações para os que querem adotar é entrar com pedidos em diversas comarcas. Esse procedimento aumenta muito a chance de a história ter um final feliz, como a de Campelo, que considera a decisão de adotar uma criança a melhor coisa que poderia ter feito. "Nos damos todos muito bem. É muito interessante observar os laços de confiança sendo construídos e ver o desabrochar de uma criança. Patrícia chegou em casa muito séria, não esboçava um sorriso e hoje ela é brincalhona e risonha", conta a mãe orgulhosa. Celso Augusto Rodrigues Soares e Ana Angélica Campelo com suas filhas Clara, biológica, e Patrícia, adotada
Internacional Teoricamente, as adoções no país têm uma seqüência de prioridades. Primeiro é preciso tentar fazer que a criança volte para sua família de origem. Se não for possível, procura-se uma família brasileira e se, ainda assim, a criança não achar um novo lar, parte-se para a adoção internacional. Acontece que as dificuldades no Brasil têm aberto as portas para que outros países adotem as crianças brasileiras. "Os casais estrangeiros são mais preparados, conhecem a realidade do país e são muito mais abertos na hora de adotar", afirma Lamego. Segundo estimativas da Autoridade Central Administrativa Federal, 482 crianças foram para o exterior em 2004 - a Itália é o principal destino. Boa parte delas tinha mais de 6 anos, eram casais de irmãos e muitos tinham alguma deficiência física. Um dos fatores que favorece a adoção internacional é a falta do tal cadastro unificado, porque algumas crianças que poderiam encontrar famílias brasileiras terminam sendo adotadas por casais estrangeiros. A solução pode ser o Infoadote, um sistema que vem sendo desenvolvido, desde 2004, pela SEDH, com base nos dados do Sistema de Informações para a Infância e a Adolescência (Sipia), um banco eletrônico de registro e tratamento de informações sobre a garantia dos direitos fundamentais, preconizado pelo ECA. A proposta do Infoadote é ser esse cadastro único e nacional. Os municípios passariam suas informações para o estado, que seria o responsável por alimentar o sistema nacional. Para agilizar os processos, todos os dados estariam disponíveis para consulta na internet. Alguns estados já conseguiram: Pernambuco, Roraima, Amazonas, Rio Grande do Norte, Pará, Ceará e Espírito Santo. A idéia é apresentar a versão web do Infoadote às demais unidades da federação ainda neste ano. "O problema é que alguns estados são mais fechados, acham os próprios sistemas melhores. Às vezes, sentimos resistência, mas a grande vantagem do Infoadote é que ele aceita a migração de dados de outras bases. O estado pode continuar com o seu sistema, o que pedimos é que esse cadastro nacional seja alimentado por todos", explica o juiz Humberto Costa Vasconcelos Júnior, da 3ª Vara da Infância e Juventude do Recife e coordenador nacional do Sipia. O segundo grande obstáculo que atravanca o processo brasileiro de adoção são os prazos. Ou melhor, a falta deles, já que o ECA não estabelece um tempo específico para perda do poder familiar. "É preciso estipular prazos para a criança não ser esquecida, mas eles também não podem funcionar contra a família de origem. Muitas vezes a criança é deixada num abrigo porque seus pais não têm condições financeiras de sustentá-la. A saída, nesse caso, nem sempre é a adoção, mas a inclusão da família em programas sociais do governo", sugere Campelo. A grande dúvida é: quanto tempo seria necessário para decidir se uma criança deve ser liberada para adoção ou reintegrada à família de origem? "Se o prazo for pequeno demais, a legislação acaba funcionando para o adotante, e não para o adotado. Está implícita aí a escolha entre a cultura de encontrar uma família para uma criança ou uma criança para uma família", afirma Valle dos Reis, da SEDH. "São necessários prazos para as autoridades, e não para a família. É preciso equilíbrio para que a pobreza e a indigência não sejam penalizados", defende Alison Sutton, coordenadora do programa de proteção da criança e do adolescente do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Exatamente porque não há padronização de prazos e procedimentos, um processo de adoção pode levar muitos anos ou ser rápido. Jandimar Maria Guimarães, presidente do Grupo de Apoio à Adoção de Brasília, tem cinco filhos adotados, entre eles um casal de gêmeos de 5 anos de idade, Marcos e Mateus Silva Guimarães. Os processos variaram de 30 dias a três anos. O Projeto Sapeca, de Campinas, já atendeu 46 crianças nos seus nove anos de funcionamento Legislação Os elementos que dificultam o processo de adoção são diversos e as soluções difíceis porque o que está em jogo é o futuro das crianças. O resultado dessa complexidade é que, apenas na Câmara dos Deputados, tramitam cerca de 100 propostas de alteração na legislação de adoção. Os projetos vão de mudanças nas regras para adoção internacional à permissão da guarda de crianças por casais homossexuais. Como é impossível tratar cada um deles individualmente, foi criada a Comissão sobre o Direito à Convivência Familiar e Comunitária com o objetivo de avaliar os projetos e elaborar um texto que congregue tanto as propostas dos congressistas como as feitas por meio de debates e audiências públicas. A expectativa é que o relatório esteja pronto em março deste ano. Como a Comissão tem caráter conclusivo, se o texto for aprovado, seguirá direto para o Senado. O Projeto de Lei (PL) n° 1. 756/03, de autoria do deputado, hoje licenciado, João Mato (PMDB/SC), foi, sem dúvida, a proposta que mais causou polêmica. A crítica mais freqüente ao projeto é que ele privilegia a adoção em detrimento do incentivo dos vínculos com a família biológica. Isso porque o PL prevê que os abrigos devam encaminhar à autoridade judiciária e ao Ministério Público, num prazo máximo de 60 dias após a chegada da criança na instituição, um relatório sobre a situação da criança, indicando o que deve ser feito com ela - ser liberada para adoção ou voltar para a própria família. A partir da data do recebimento desse relatório, o juiz disporia de um período de 120 dias, podendo ser prorrogado por mais 120, para dar seu parecer final sobre o destino da criança. Outro ponto contestado é que o PL abre precedentes para a separação de irmãos, algo condenado pelo ECA. Um terceiro item questionado é a concessão de subsídios financeiros aos servidores públicos federais que adotarem crianças com necessidades especiais. E, por fim, o PL também propõe que a adoção internacional não seja restrita aos países signatários da Convenção de Haia, como acontece atualmente. Lamego, da Autoridade Central Administrativa Federal, considera um problema incluir no projeto a possibilidade de países não signatários da convenção adotarem crianças brasileiras porque não há garantias sobre os direitos dos adotados em seus novos lares. A deputada Maria do Rosário Nunes (PT-RS), presidente da Comissão, lembra que o período de análise das diversas propostas já terminou e uma nova lei que desenvolva as condições para o cumprimento do ECA precisa ser enviada ao Senado ainda neste semestre. O substitutivo deve estipular os limites de tempo para que a Justiça decida se a criança deve voltar para sua família de origem ou se deve seguir para adoção. "Os prazos não serão ultimatos nem arbitrários, mas queremos criar a cultura de que deve ser traçado, pelas autoridades, um plano de vida para cada criança. Se julgarem necessário, as autoridades poderão pedir mais tempo para decidir", afirma Nunes. A Constituição de 1988 e o ECA, aprovado em 1990, exigiram que as práticas daqueles que prestam serviços para crianças e jovens sofressem mudanças e revisões. De acordo com a Constituição, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, à liberdade e ao respeito. Trabalhar por um presente e um futuro melhores para eles significa lutar por uma sociedade mais democrática, igualitária e não-discriminatória. Às crianças brasileiras são negados direitos básicos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cada ano quase 750 mil crianças - cerca de um quinto dos recém- nascidos - completam o primeiro ano de vida sem ser registradas, o que mostra que o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para garantir o que prevê a Constituição. Tentar assegurar, de forma efetiva, às crianças e aos adolescentes o direito à convivência familiar e comunitária parece ser um bom começo. |