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LUCHMANN, Lígia. Abordagens teóricas sobre o associativismo e seus efeitos democráticos

 

LUCHMANN, Lígia Helena Hahn. Abordagens teóricas sobre o associativismo e seus efeitos democráticos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, V. 29, N. 85, Junho 2014.



Introdução

As condições e os impactos das associações na vida social podem ser analisados de diversas maneiras e seguindo variados objetivos e enfoques analíticos, a fim de avaliar: as influências dos grupos e associações no processo de socialização dos indivíduos; as potencialidades em promover a reprodução, a integração ou a transformação social; suas capacidades de alavancar o desenvolvimento econômico; o fomento de estruturas de pertencimento e de identidade cultural, entre outros. Inserido no campo da sociologia política, este trabalho observará as relações entre as associações e a democracia tendo como cenário as sociedades contemporâneas marcadas por alto grau de complexidade e de pluralidade da vida social.

O interesse por esse tema segue uma importante tendência teórica que tem renovado ou revivido, em boa parte a partir de Tocqueville, as análises da importância das associações para a democracia, cuidando para diferenciar tanto as potencialidades democráticas das associações quanto as variadas concepções de democracia que as sustentam. Em seu livro Democracy and association (2001), Mark Warren aponta para a emergência de um consenso no interior da teoria democrática acerca da importância da vida associativa para a democracia, pelo fato de as associações serem reconhecidas por seu cultivo ao desenvolvimento de virtudes cívicas, consideradas cruciais para uma sociedade democrática. Além disso, e entre outras contribuições, as associações permitiriam ampliar os domínios das práticas democráticas para diversas esferas da vida social, constituindo meios alternativos para dar voz aos desfavorecidos em função das condições desiguais de distribuição de dinheiro e poder (cf. Warren, 2001; Fung, 2003; Cohen, 1999; Avritzer, 1997).

O aumento do interesse pelo fenômeno do associativismo está também interligado com o reconhecimento dos impactos dos fenômenos da globalização, da complexidade e da pluralização na reconstituição das identidades, práticas e repertórios da ação coletiva (Warren, 2001). A crescente interdependência entre os Estados-nação, o desenvolvimento dos mercados globais, as questões ambientais que atravessam fronteiras nacionais, as novas tecnologias e meios de comunicação são, entre tantos outros, aspectos da globalização que se desenvolvem vis-à-vis à proliferação de novas instituições políticas e de organizações sociais. A articulação de demandas locais, nacionais e transnacionais provoca mudanças sociais e políticas que desafiam os aportes conceituais e explicativos da teoria democrática, seja pelo questionamento da capacidade dos Estados em coordenar e mediar as demandas e conflitos sociais, seja pelo processo crescente de pluralização da vida associativa e dos espaços da política, o que alarga e complexifica o lócus da representação política institucional por meio de bases que transcendem os limites territoriais do modelo eleitoral (Urbinati e Warren, 2008).

Diante desse cenário, avolumam-se os estudos e os debates sobre o papel das associações para o desenvolvimento da democracia das sociedades. Partindo-se do pressuposto geral de que um sistema político é mais democrático quando as suas instituições oferecem oportunidades mais igualitárias para os cidadãos tomarem parte das decisões políticas e dos julgamentos coletivos (Warren, 2001), o papel e os impactos das associações se desdobram em diversas – e não necessariamente cumulativas – possibilidades, com destaque para três conjuntos de contribuições: no desenvolvimento individual, contribuindo para a formação, o aumento e o suporte na formação de cidadãos mais democráticos, especialmente em sua capacidade de produzir julgamentos autônomos; na formação da opinião pública construindo, ampliando e problematizando as opiniões e políticas; no fortalecimento das instituições de representação, além da criação de canais institucionais que produzam, via participação dos cidadãos, decisões políticas legítimas. Por meio da representação política, da pressão, da resistência, da participação ou da cooperação, o fato é que, diante dessa paisagem complexa e plural que conforma as sociedades contemporâneas, a democracia se fortalece quando contemplada por um quadro rico e plural de práticas e dinâmicas associativas atuando em diversas tarefas, cooperativas e/ou conflitivas, que ampliam e diversificam as demandas e as respostas democráticas para as diferenciadas necessidades e conflitos políticos e sociais. É este o sentido geral da ideia de "ecologia democrática das associações" (Idem).

No entanto, convém alertar que certo consenso acerca das relações positivas entre associativismo e democracia carrega um alto grau de generalização sobre os impactos democráticos das associações, sem maiores cuidados no que se refere à necessidade de se especificar, no interior desse campo complexo e plural, os diferentes tipos de associações e seus distintos, e muitas vezes contraditórios, efeitos democráticos. Alguns autores (Paxton, 2002; Stolle e Rochon, 1998; Baggetta, 2009; Robteutscher, 2005; Fung, 2003; Chambers e Kopstein, 2001 e 2006; Dagnino, Olvera e Panfichi, 2006) vêm procurando desagregar esse fenômeno, com destaque para o trabalho de Warren (2001), pois reconhecem que muitas associações não são boas para a democracia, como determinados grupos privados, grupos racistas, de ódio, e muitos grupos de interesses poderosos que fazem jus às suspeitas de facciosismo levantadas por Madison e Rousseau em suas preocupações com o ideal do bem comum (Idem, p. 10).

Em que pese esse reconhecimento – e a grande dificuldade de construir um quadro teórico frente à diversidade do mundo associativo –, é possível, de acordo com Warren, construir uma teoria das associações no interior da teoria democrática que permita distinguir os seus diferentes papéis e impactos para a democracia (Idem, p.12). De fato, a ideia de ecologia parece proporcionar ganhos analíticos importantes, na medida em que não apenas expande o olhar para um conjunto mais amplo de práticas associativas, mas também identifica diferenças substantivas entre elas, evitando os riscos de se apontar efeitos democráticos onde eles não existem, especialmente quando se considera o fenômeno associativo de forma abstrata e generalizante.

Nesse sentido, os avanços na construção de marcos analíticos que permitam capturar a pluralidade do fenômeno associativo implicam identificar as ambiguidades e os limites desse campo de ação social, suas desigualdades de poder e de recursos e as influências dos respectivos contextos e das relações que estabelecem com outros atores e instituições políticas, econômicas e sociais.

Ressaltamos que a literatura sobre as relações entre associações e democracia é ampla e plural, abrigando diferentes perspectivas que retratam, sob marcos analíticos distintos, determinadas qualidades democráticas das associações. Reconhecendo a abrangência e a pluralidade dessas vertentes analíticas, o artigo concentra três perspectivas teóricas que se dedicam cada qual em atribuir determinados benefícios democráticos às associações, enfatizando, portanto, determinados atributos em detrimento de outros. A escolha dos três conceitos – capital social, sociedade civil e movimentos sociais – é justificada, respectivamente: pelo lugar preponderante que eles ocupam na literatura brasileira sobre as práticas de ação coletiva; por privilegiarem diferentes benefícios democráticos das associações e/ou práticas coletivas – ou seja, cada vertente enfatiza determinados atributos de acordo com as influências e o enquadramento teórico mais abrangente; por fim, por acomodarem, de forma mais explícita, a importância e o papel das associações no interior dos respectivos quadros conceituais.

Convém ressaltar a própria complexidade e pluralidade de cada uma dessas vertentes teóricas, que abrigam disputas, debates e tensões. Para citarmos um exemplo, no campo das teorias da sociedade civil, perspectivas de matriz gramsciana acusam a perda de potência transformadora da vertente habermasiana, em especial por separar o campo social do campo de atuação política, e, portanto, do poder político-governamental. As teorias dos movimentos sociais, em que pesem as recentes propostas de síntese teórica (McAdam, McCarthy e Zald, 2008), conformam famílias teóricas distintas (Alonso, 2009)3 ou paradigmas que se debruçam sobre diferentes tipos de ação coletiva ou atores sociais. Além de disputas, há também articulações e diálogos entre essas matrizes, a exemplo das aproximações entre a teoria do capital social de Putnam, da teoria da sociedade civil de Arato e Cohen – que compartilham o resgate das contribuições originais de Tocqueville – ou do reconhecimento, por parte destes, da importância dos movimentos sociais, entre várias outras articulações dessas perspectivas.

Diante desse quadro, nosso objetivo central é resgatar as matrizes que, no interior de cada uma das três linhas teóricas apresentadas, apontam de forma mais incisiva os benefícios democráticos das associações. Esse resgate permite uma ampliação do olhar em dois sentidos: amplia as lentes do campo associativo, incorporando uma diversidade de práticas que, de outra forma, não encontram guarida se pensadas em uma única vertente; amplia o foco para além das formas organizativas dos agentes sociais, ressaltando, à luz de contribuições dessa literatura, a importância dos respectivos contextos e das relações políticas e sociais.

Este texto está dividido em quatro itens. Os três primeiros apresentam as bases mais gerais das vertentes analíticas, procurando identificar: a) os principais atributos e mecanismos democráticos que são depositados, em cada uma delas, a determinados grupos, associações e/ou movimentos sociais; b) algumas de suas limitações, se quisermos tratar o campo associativo a partir da ideia de ecologia. A abordagem do capital social remonta à classica análise de Tocqueville em A democracia na América (1987), dando especial atenção à importância da vida associativa em geral e, mais particularmente, à capacidade das associações gerarem padrões de civilidade nos cidadãos. A segunda abordagem advém do campo teórico dos movimentos sociais. Em vez de se centrar, como na perspectiva anterior, nos atributos da confiança e da cooperação, a ênfase recai sobre as relações de conflito e de contestação. Embora em estreita articulação com essas duas abordagens, a perspectiva analítica da sociedade civil não apenas incorpora as dimensões e os potenciais democráticos apontados nas vertentes anteriores como faz ampliar, no conjunto, o rol dos efeitos democráticos das associações, ressaltando os seus impactos na esfera pública.

O quarto item apresenta os pressupostos gerais da ideia de ecologia democrática das associações, introduzindo uma definição que identifica a influên­cia de Tocqueville (1987) para a sedimentação de uma noção voluntarista e autonomista desse fenômeno social. Essa influência é responsável, em boa medida, pela construção de um sistema de classificação que, ao destacar a importância das "associações secundárias" para a democracia, limitou um olhar mais abrangente, plural e relacional. A fim de compreender o fenômeno do associativismo, além do reconhecimento de outros grupos e organizações, demonstra-se a importância de transcender uma dimensão que, voltada aos agentes – seus recursos, perfis, trajetórias, objetivos e propostas –, perde fôlego se desconsiderar as dimensões dos contextos e das dinâmicas das relações políticas e sociais. Tais elementos são identificados de diferentes maneiras na literatura. Por exemplo, se uma vertente da teo­ria dos movimentos sociais (teoria dos processos políticos) indica força explicativa para o contexto político na conformação das práticas coletivas, a perspectiva do capital social registra a influência do contexto social, econômico e cultural. No campo que privilegia a perspectiva das relações ou redes sociais, avolumam-se os estudos que miram as dinâmicas e as relações não apenas entre os atores sociais, mas também entre estes e as instituições políticas (Goldstone, 2003), ou entre o Estado e a sociedade civil (Silva, 2006; Houtzager, Lavalle e Acharya, 2004; Dagnino, Olvera e Panfichi, 2006; Abers e Bullow, 2011).

Com base na apresentação das principais contribuições e características dessas três vertentes, nosso propósito geral é reconhecer a importância de diferentes tipos, tamanhos, configurações e relações associativas concordando com o pressuposto de que conhecer e conceituar esse terreno é uma das mais significativas tarefas para aqueles que acreditam que a democracia pode, ainda, ser expandida e aprofundada (cf. Warren, 2001, p. 13).